Política na idade média


                                                 A POLITICA NA IDADE MÉDIA
 A Idade Média abarca um período tão extenso que é difícil caracterizá-la sem incorrer no risco da simplificação. Afinal, são mil anos (de 416 a 1455), entre a queda do Império Romano do Ocidente e a tomada de Constantinopla pelos turcos.
        A Alta Idade Média, período que se sucedeu à queda do Império, é caracterizada por um estado de desagregação da antiga ordem e pela divisão do Império em diversos reinos bárbaros.
        O desejo de unidade de poder, de restauração da antiga unidade perdida, se expressa na difusão do cristianismo que representa, na Idade Média, o ideal de
Estado universal. Desde o final do Império Romano, quando o cristianismo se tornara a religião oficial (ano 313), estabelece-se a ligação entre Estado e Igreja, pois esta legitima o poder do Estado, atribuindo-lhe uma origem divina.
        Após a formação dos reinos bárbaros, essa relação é retomada no reino franco por
Clóvis e Pepino. No ano 800, Carlos Magno restaura de certa forma a unidade do poder secular com a fundação do Império do Ocidente. Ao ser pomposamente sagrado imperador pelo papa Leão III, reforça ainda mais a aliança entre política e religião.
        Tempos difíceis se sucederam à desagregação do Sacro Império Romano-Germânico, e a partir do século XI se estabelece a nova ordem feudal. Trata-se de um  período de profundo enfraquecimento do Estado, em que os países são recortados pelos territórios possuidos por duques, condes e barões que, com suas milícias e autonomia na administração da justiça, muitas vezes tinham maior poder que o próprio rei. Fortes mesmo eram as relações de suserania e vassalagem, criando laços que uniam os senhores entre si em troca de favores e proteção.
        Nesse contexto de extrema fragmentação política e descentralização do poder, a Igreja exerce enorme influência, na medida em que mantém o monopólio do saber. Desde a invasão dos bárbaros, a cultura greco-latina permanecera por muito tempo confinada aos mosteiros, ressurgindo lentamente após o século VIII, no período conhecido como renascimento carolíngio, ocasião em que Carlos Magno mandou fundar inúmeras escolas junto às igrejas e mosteiros.
        Dessa forma, os intelectuais pertencem as ordens religiosas e, conseqUentemente, as principais questões filosóficas referem-se às relações entre fé e razão, sendo que esta se encontra sempre subordinada àquela. Se a fé é o conhecimento mais elevado e o critério mais adequado da verdade, a filosofia não é a busca da verdade - pois esta já foi encontrada mas a ela cabe apenas o trabalho de demonstração racional dessa verdade.
        De início os religiosos têm receios quanto à produção dos gregos, por serem eles pagãos, mas com as devidas interpretações e adaptações segundo a fé cristã, o pensamento medieval é fertilizado inicialmente pelo pensamento de Platão (nas obras da patrística, sobretudo de Santo Agostinho) e depois pelo de Aristóteles (no pensamento de Santo Tomás).


2.        Estado e Igreja

        Ao contrário das concepções da Antiguidade, em que a função do Estado é assegurar a vida boa, na Idade Média predomina a concepção negativa do Estado. Isto porque o homem teria uma natureza sujeita ao pecado e ao descontrole das paixões, o que exige vigilância constante, cabendo ao Estado intimidar os homens para que hajam retamente.
        Daí podermos observar a estreita ligação entre política e moral, com a exigência de se formar o governante justo, não-tirânico, que por sua vez consiga obrigar, muitas vezes pelo medo, à obediência aos princípios da moral cristã.
        Portanto, na Idade Média configuram-se duas instâncias de poder: a do Estado e a da Igreja. O Estado é de natureza secular, temporal, voltado para as necessidades mundanas e caracteriza-se pelo exercício da força física. A Igreja é de natureza espiritual, voltada para os interesses da salvação da alma e deve encaminhar o rebanho para a verdadeira religião por meio da força da educação e da persuasão.
        A tensão entre os dois poderes assumiu diferentes expressões no decorrer do período, criando inúmeros conflitos.
        Ainda no final da Antiguidade, próximo à queda do Império Romano, viveu Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona. Na obra A cidade de Deus trata do discutido tema das duas cidades, a "cidade de Deus" e a "cidade terrestre", que não devem ser entendidas simplesmente como referência ao reino de Deus que se sucede à vida terrena, mas à coexistência dos dois planos de existência na vida de cada um. Ou seja, todos têm uma dimensão terrena que se refere à sua história natural, à moral, às necessidades materiais e que diz respeito a tudo que é perecível e temporal. Outra dimensão é a celeste, que corresponde à comunidade dos cristãos, inspirada na amora Deus e que vive da fé.
        Para Santo Agostinho, a relação entre as duas dimensões é de ligação e não de oposição, mas a repercussão do seu pensamento, à revelia do autor, desemboca  na doutrina chamada agostinisnzo político, que marca toda a Idade Média e significa o confronto entre o poder do Estado e o da Igreja, considerando a superioridade do poder espiritual sobre o temporal.


3.        A luta das duas espadas

        A luta das duas espadas foi formulada teoricamente por São Bernardo de Claraval, no século XII, e representa o acirramento do confronto entre os dois poderes, o espiritual e o temporal. Se cabe aos reis cuidar dos corpos e à Igreja a salvação da alma, esta última tarefa é superior e não se deve poupar aqueles que praticam delitos contra a moral cristã, atribuindo-se o direito de punição aos ofensores. Quando se trata de reis, pode caber até a deposição, o que era possível na medida em que o papa, ao excomungar um rei, desobrigava os fiéis do dever de fidelidade.
        Aliás, isso já tinha acontecido um século antes, a propósito da "querela das investiduras", quando o papa Gregório VII passou a combater a investidura dos bispos feita pelo poder laico, uma vez que proliferava a prática de reis distribuirem igrejas conforme suas conveniências. Ao ser enfrentado por Henrique IV, rei da Germânia, o papa o ameaçou com a excomunhão, obrigando-o a implorar perdão por três dias, humildemente descalço, às portas do castelo papal de Canossa.
                No século XIII, os choques entre Frederico II e o papa Inocêncio IV e, no final do mesmo século, entre Filipe, o Belo, da França, e o papa Bonifácio VIII indicam as tentativas dos reis de recusarem a interferência religiosa nos assuntos de política.
        No final do século XIV, o Grande Cisma acentua a divergência e a tentativa do Estado de firmar sua soberania, O teólogo inglês Wyclif defende a idéia da Igreja nacional, traduz a Bíblia para o inglês e recusa a intromissão do papado. Essas divergências culminam no século XVI com a Reforma protestante.


TEXTO DO LIVRO FILOSOFANDO


A POLÍTICA COMO CATEGORIA AUTÔNOMA

Maquiavel

        E necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade.

        Como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar. E muita gente imaginou repúblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos como verdadeiros.

     Formação do Estado nacional

        Durante a Idade Média, como vimos, o poder do rei era sempre confrontado com os poderes da Igreja ou da nobreza. As monarquias nacionais surgem com o fortalecimento do rei, e portanto com a centralização do poder, fenômeno este que se desenvolve desde o final do século XIV (Portugal) e durante o século XV (França, Espanha, Inglaterra).
        Dessa forma surge o Estado moderno, que apresenta características específicas, tais como o monopólio de fazer e aplicar as leis, recolher impostos, cunhar moeda, ter um exército. A novidade é que tudo isso se torna prerrogativa do governo central, o único que passa a ter o aparato administrativo para prestação dos  serviços públicos bem como o monopólio legítimo da força.
        É em função desse contexto que se torna possível compreender o pensamento de Maquiavel.


      A Itália dividida

        Enquanto as demais nações européias conseguem a centralização do poder, a Alemanha e a Itália se acham fragmentadas em inúmeros Estados sujeitos a disputas internas e a hostilidades entre cidades vizinhas. No caso da Itália, a ausência de unificação a expõe à ganância de outros países como Espanha e França, que reivindicam
territórios e assolam a península com ocupações interminaveis.
        É nessa Itália dividida que vive Nicolau Maquiavel (1469-1527) na república de Florença. Observa com apreensão a falta de estabilidade política da Itália, dividida em principados e repúblicas onde cada um possui sua própria milícia, geralmente formada por mercenários condottieri 1. Nem mesmo os Estados Pontifícios deixavam de formar os seus exércitos.
        Maquiavel não foi apenas um intelectual que refletiu a respeito de política, pois viveu intensamente a luta de poder no período em que Florença, tradicionalmente sob a influência da família Medici, encontrava-se por uma década governada pelo republicano Soderini.
        Nessa época Maquiavel ocupa a Segunda Chancelaria do governo, função que o obriga a desempenhar inúmeras missões diplomáticas na França, Alemanha e pelos diversos Estados italianos. Tem oportunidade de entrar em contato direto com reis, papas e nobres, e também com o condottiere César Bórgia, que estava empenhado na ampliação dos Estados Pontifícios. Observando a maneira de Bórgia agir, Maquiavel o considera o modelo de príncipe que a Itália precisava para ser unificada.
        Quando Soderini é deposto e os Medici voltam à cena política, Maquiavel cai em desgraça e recolhe-se para escrever as obras que o consagraram. Entre peças de teatro (como a famosa Mandrágora), poesia, ensaios diversos, destacam-se O príncipe e Comentários sobre a primeira década de Tito Lírio.
 

      Controvérsias sobre O príncipe

        Escrito em 1513 e dedicado a Lourenço de Medici, O príncipe tem provocado inúmeras interpretações e controvérsias. Uma primeira leitura nos dá uma visão da defesa do absolutismo e do mais completo imoralismo: "É necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade".
        Essa primeira leitura apressada da obra levou à criação do mito do maquiavelismo, que tem atravessado os séculos. Esse mito não só representa a figura do político maquiavélico mas se estende até à avaliação das atividades corriqueiras de qualquer pessoa.
        Na linguagem comum, chamamos pejorativamente de maquiavélica a pessoa sem escrúpulos, traiçoeira, astuciosa que, para atingir seus fins, usa da mentira e  da má-fé, sendo capaz de enganar tão sutilmente que pode nos fazer pensar que agimos livremente quando na verdade somos por ela manipulados. Como expressão dessa  amoralidade, costuma-se vulgarmente atribuir a Maquiavel a famosa maxima: "Os fins justificam os meios". Ora, essa interpretação se mostra excessivamente simplista e deformadora do pensamento  maquiaveliano e, para superá-la, é preciso analisar com mais atenção o impacto das inovações do seu pensamento político.
        Contrapondo-se à análise pejorativa do maquiavelismo, Rousseau, no século XVIII, defende o florentino afirmando que O príncipe era na verdade uma sátira, e a intenção verdadeira de Maquiavel seria o desmascaramento das práticas despóticas, ensinando, portanto, o povo a se defender dos tiranos. Tal hipótese se sustentaria a partir da leitura dos Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, onde são desenvolvidas as idéias do Maquiavel republicano.
        Modernamente, no entanto, rejeita-se a visão romântica de Rousseau, e a aparente contradição entre as duas obras é interpretada como fruto de dois momentos  diferentes da ação política. Em um primeiro estádio, representado pela ação do príncipe, o poder deve ser conquistado e mantido, e para tanto justifica-se o poder absoluto. Posteriormente, alcançada a estabilidade, é possível e desejável a instalação do governo republicano.
        Além disso, as idéias democráticas aparecem veladamente também no capítulo  IX de O príncipe, quando Maquiavel se refere à necessidade de o governante ter o apoio do povo, sempre melhor do que o apoio dos grandes, que podem ser traiçoeiros. O que está sendo timidamente esboçado é a idéia de consenso, que terá importância fundamental nos séculos seguintes.

     O príncipe virtuoso

        Para descrever a ação do príncipe, Maquiavel usa as expressões italianas virtu e fortuna. Virtu significa virtude, no sentido grego de força, valor, qualidade de lutador e guerreiro viril. Homens de virti são homens especiais, capazes de realizar grandes obras e provocar mudanças na história.
        Não se trata do príncipe virtuoso no sentido medieval, enquanto bom e justo segundo os preceitos da moral cristã, mas sim daquele que tem a capacidade de perceber o jogo de forças que caracteriza a política para agir com energia a fim de conquistar e manter o poder. O príncipe de virtu não deve se valer das normas preestabelecidas da moral cristã, pois isso geralmente pode significar a sua ruina.
        Implícita nessa afirmação se acha a noção de fortuna, aqui entendida como ocasião, acaso. O príncipe não deve deixar escapar a fortuna, isto é, a ocasião.De nada adiantaria um príncipe virtuoso, se não soubesse ser precavido ou ousado, aguardando a ocasião propícia, aproveitando o acaso ou a sorte das circunstâncias, como observador atento do curso da história. No entanto, a fortuna não deve existir sem a virtu, sob pena de se transformar em mero oportunismo.

    Ética e política                          

        A novidade do pensamento maquiaveliano, justamente a que causou maior escandalo e críticas, está na reavaliação das relações entre ética e política. Por um lado, Maquiavel apresenta uma moral laica, secular, de base naturalista, diferente da moral cristã; por outro, estabelece a autonomia da política, negando a anterioridade das questões morais na avaliação da ação política.
        Para a moral cristã, predominante na Idade Média, há valores espirituais superiores aos políticos, além de que o bem comum da cidade deve se subordinar ao bem supremo da salvação da alma. "A moral cristã se apóia em uma concepção do bem e do mal; do justo e do injusto, que ao mesmo tempo preexiste e transcende a autoridade do Estado, cuja organização político-jurídica não deve contradizer ou violar as formas éticas fundamentais, implícitas no direito natural. O indivíduo está subordinado ao Estado, mas a ação deste último se acha limitada pela lei natural ou moral que constitui uma instância superior à qual todo membro da comunidade pode recorrer sempre que o poder temporal atentar contra seus direitos essenciais inalienáveis.A nova ética analisa as ações não mais em função de uma hierarquia de valores dada a priori, mas sim em vista das conseqúências, dos resultados da ação política. Não se trata de um amoralismo, mas de uma nova moral centrada nos critérios da avaliação do que é útil à comunidade: o critério para definir o que é moral é o bem da comunidade, e nesse sentido às vezes é legítimo o recurso ao mal (o emprego  da força coercitiva do Estado, a guerra, a prática da espionagem, o emprego da violência). Estamos diante de uma moral imanente, mundana, que vive do relacionamento entre os homens. E se há a possibilidade de os homens serem corruptos, constitui dever do príncipe manter-se no poder a qualquer custo. Maquiavel distingue entre o bom governante, que é forçado pela necessidade a usar da violência visando o bem coletivo, e o tirano, que age por capricho ou interesse próprio.
O pensamento de Maquiavel nos leva à reflexão sobre a situação dramática e ambivalente do homem de ação: se o indivíduo aplicar de forma inflexível o código moral que rege sua vida pessoal à vida política, sem dúvida colherá fracassos sucessivos, tornando-se um político incompetente. Tal afirmação pode levar as pessoas a considerar que Maquiavel estaria defendendo o político imoral, os corruptos e os tiranos. Não se trata disso. A leitura maquiaveliana sugere a superação dos escrúpulos imobilistas da moral individual, mas não rejeita a moral própria da ação política: "Se o indivíduo, na sua existência privada, tem o direito de sacrificar o seu bem pessoal imediato e até sua própria vida a um valor moral superior, ditado pela sua consciência, pois em tal hipótese estará empenhando apenas seu destino particular, o mesmo não acontece com o homem de Estado, sobre o qual pesam a pressão e a responsabilidade dos interesses coletivos; este, de fato, não terá o direito de tomar uma decisão que envolva o bem-estar ou a segurança da comunidade, levando em conta tão somente as exigências da moral privada; casos haverá em que terá o dever de violá-la para defender as instituições que representa ou garantir a própria sobrevivência danação".
            Isso significa que a avaliação moral não deve ser feita antes da ação política, segundo normas gerais e abstratas, mas a partir de uma situação específica que é avaliada em função do resultado dela, já que toda ação política visa a sobrevivência do grupo e não apenas de indivíduos isolados.
            Por isso Maquiavel não pode ser considerado um cínico apologista da violência. O que ele enfatiza é que os critérios da ética política precisam ser revistos conforme as circunstâncias e sempre tendo em vista os fins coletivos.
        No entanto, é bom lembrar que o pensamento de Maquiavel tem um sentido próprio, na medida em que ele expressa a tendência fundamental da sua época, ou seja, a defesa do Estado absoluto e a valorização da política secular, não atrelada à religião. Talvez por isso o extremo politicismo, ou seja, a hipertrofia do valor  político, de cujas consequências últimas talvez nem ele próprio pudesse suspeitar.
        Embora Maquiavel nào tivesse usado o conceito de razão de Estado, é considerado o pensador que começa a esboçar a doutrina que vigorará no século seguinte, quando o governante absoluto, em circunstâncias críticas e extremamente graves, a ela recorre permitindo-se violar normas jurídicas, morais, políticas e econômicas.
        Cassirer, filósofo alemão contemporâneo, observa que a experiência pessoal de Maquiavel se baseava nas pequenas tiranias italianas do século XVI, que não podem ser comparadas às monarquias absolutas do século XVII nem as nossas ditaduras modernas, o que nos faz ver hoje o maquiavelismo através de uma lente de aumento.


    Maquiavel republicano

        Quando estava no ostracismo político, Maquiavel se ocupa com a elaboração dos Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, interrompendo esse trabalho por alguns meses para escrever O príncipe.
        À medida que escreve os Comentários, lê trechos nas reuniões realizadas por jovens republicanos, a quem dedica a obra. Aí desenvolve idéias democráticas, admitindo que o conflito é inerente à atividade política e que esta se faz a partir da conciliação de interesses divergentes.
        Defende a proposta do governo misto:
"Se o príncipe, os aristocratas e o povo governam em conjunto o Estado, podem com facilidade controlar-se mutuamente".
        Considera importante que as monarquias ou repúblicas sejam governadas pelas leis e acusa aqueles que, no uso da violência, abusaram da crueldade, ou a usaram para interesses menores.


        A autonomia da política

        Maquiavel subverte a abordagem tradicional da teoria política feita pelos gregos e medievais e é considerado o fundador da ciência política, ao enveredar por novos caminhos "ainda não trilhados".
        Pode-se dizer que a política de Maquiavel é realista, pois procura a verdade efetiva, ou seja, "como o homem age de fato". As observações das ações dos homens do seu tempo e dos estudos dos antigos, sobretudo da Roma Antiga, levam-nos à constatação de que os homens sempre agiram pelas vias da corrupção e da violência. Partindo do pressuposto da natureza humana capaz do mal e do erro, analisa a ação política sem se preocupar em ocultar "o que se faz e não se costuma dizer".
        A esse realismo alia-se a tendência utilitarista, pela qual Maquiavel pretende desenvolver uma teoria voltada para a ação eficaz e imediata. A ciência  política só tem sentido se propiciar o melhor exercício da arte política. Trata-se do começo da ciência política: da teoria e da técnica da política, entendida como disciplina autônoma.
        Maquiavel torna a política autônoma porque a desvincula da ética e da religião, procurando examiná-la na sua especificidade própria.
        Em relação ao pensamento medieval, Maquiavel procede à secularização da política, rejeitando o legado ético-cristão. Além da desvinculação, da religião, a ética política se distingue da moral privada, uma vez que a ação política deve ser julgada a partir das circunstâncias vividas, tendo em vista os resultados alcançados na busca do bem comum.
        Com isso, Maquiavel se distancia da política normativa dos gregos e medievais, pois não mais busca as normas que definem o bom regime, nem explicita quais devem ser as virtudes do bom governante. Em alguns casos, como o de Platão, a preocupação em definir como deve ser o bom governo leva à construção de utopias,  o que mereceu a crítica de Maquiavel.
        Talvez alguém inadvertidamente se pergunte se o próprio Maquiavel não estaria à procura do príncipe ideal, indicando as normas para conquistar e não perder o poder. No entanto, há, de fato, diferenças fundamentais entre o "dever ser" da política  clássica e  aquele a que se refere Maquiavel. Na nova perspectiva, para fazer política é preciso compreender o sistema de forças existentes e calcular a alteração do equilíbrio provocada pela interferência de sua própria ação nesse sistema.

HOBBES E O ESTADOABSOLUTO


Sejamos o lobo do lobo do homem.
                                                    (Caetano Veloso)

Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra
todos os homens.
(Hobbes)

        E os pactos sem a espada não passam de palavras sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros.
(Hobbes)





  Introdução

        Thomas Hobbes (1588-1679), inglês de família pobre, conviveu com a nobreza, de quem recebeu apoio e condições para estudar, e defendeu ferrenhamente o poder absoluto, ameaçado pelas novas tendências liberais. Teve contato com Descartes, Francis Bacon e Galileu. Preocupou-se, entre outras coisas, com o problema do conhecimento, tema básico das reflexões do século XVII, representando a tendência empirista. Também escreveu sobre política: as obras De cive e Leviatã.  O  que acontece no século XVII, época em que Hobbes viveu? O absolutismo, atingindo o apogeu, encontra-se em vias de ser ultrapassado, e enfrenta inúmeros movimentos de oposição baseados em idéias liberais. Se na primeira fase (Inglaterra de Isabel e França de Luís XIV) o absolutismo favorece a economia mercantilista, pois as indústrias nascentes são protegidas pelo governo, já na segunda fase o desenvolvimento do capitalismo comercial repudia o intervencionismo estatal, uma vez que a burguesia ascendente agora aspira à economia livre.
        Continua a laicização do pensamento, a partir do sentimento de independência em relação ao papado e da crítica à teoria do direito divino dos reis. A vida política é agitada por movimentos revolucionarios: na França, terminada a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), rebenta a Fronda; na Inglaterra, Cromwell, comandando a Revolução Puritana, destrona e executa o rei Carlos 1(1649).

   Estado de natureza e contrato

        A partir da tendência de secularização do pensamento político, os filósofos do século XVII estão preocupados em justificar racionalmente e legitimar o poder do Estado sem recorrer à intervenção divina ou a qualquer explicação religiosa. Daí a preocupação com a origem do Estado.
        É bom lembrar que não se trata de uma visão histórica, de modo que seria ingenuidade concluir que a "origem" do Estado se refere á preocupação com o seu "começo". O termo deve ser entendido no sentido lógico, e não cronológico, como "princípio" do Estado, ou seja, sua raison dêtre (razão de ser). O ponto crucial não é a história, mas a validade da ordem social e política, a base legal do Estado.
        Como examinaremos no Capítulo 22 (O que é liberalismo), as teorias contratualistas representam a busca da legitimidade do poder que os novos pensadores políticos esperam encontrar na representatividade do poder e no consenso. Essa temática já existe em Hobbes, embora a partir de outros pressupostos e com resultados e propostas diferentes daquelas dos liberais. O que há de comum entre os filósofos contratualistas é que eles partem da análise do homem em estado de natureza, isto é, antes de qualquer sociabilidade, quando, por hipótese, desfruta de todas as coisas, realiza os seus desejos e é dono de um poder ilimitado. No estado de natureza, o homem tem direito a tudo: "O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e, conseqüentemente, de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim".
        Ora, enquanto perdurar esse estado de coisas, não haverá segurança nem paz alguma. A situação dos homens deixados a si próprios é de anarquia, geradora de insegurança, angústia e medo. Os interesses egoístas predominam e o homem se torna um lobo para o outro homem (homo homini lupus). As disputas geram a guerra de todos
contra todos (bellum omnium contra omnes), cuja consequência é o prejuízo para a indústria, a agricultura, a navegação, e para a ciência e o conforto dos homens.
        Na sequência do raciocínio, Hobbes pondera que o homem reconhece a necessidade de "renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo".
        A nova ordem é celebrada mediante um contrato, um pacto, pelo qual todos abdicam de sua vontade em favor de "um homem ou de uma assembléia de homens, como representantes de suas pessoas". O homem, não sendo sociável por natureza, o será por artifício. É o medo e o desejo de paz que o levam a fundar um estado social
e a autoridade política, abdicando dos seus direitos em favor do soberano.

       O Estado absoluto

        Qual é a natureza do poder legítimo resultante do consenso? Que tipo de soberania resulta do pacto?
        Para Hobbes, o poder do soberano deve ser absoluto, isto é, ilimitado. A transmissão do poder dos indivíduos ao soberano deve ser total, caso contrário, um pouco que seja conservado da liberdade natural do homem, instaura-se de novo a guerra. E se não há limites para a ação do governante, não é sequer possível ao súdito julgar se o soberano é justo ou injusto, tirano ou não, pois é contraditório dizer que o governante abusa do poder: não há abuso quando o poder é ilimitado!
        Vale aqui desfazer o mal-entendido comum pelo qual Hobbes é identificado como defensor do absolutismo real. Na verdade, o Estado pode ser monárquico, quando constituído por apenas um governante, como pode ser formado por alguns ou muitos, por exemplo, por uma assembléia, O importante é que, uma vez instituído, o Estado não pode ser contestado: é absoluto.
        Além disso, Hobbes parte da constatação de que as disputas entre rei e parlamento inglês teriam levado à guerra civil, o que o faz concluir que o poder do soberano deve ser indivisível.
Cabe ao soberano julgar sobre o bem e o mal, sobre o justo e o injusto; ninguém pode discordar, pois tudo o que o soberano faz é resultado do investimento da autoridade consentida pelo súdito.
        Hobbes usa a figura bíblica do Leviatã, animal monstruoso e cruel, mas que de certa forma defende os peixes menores de serem engolidos pelos mais fortes. É essa figura que representa o Estado, um gigante cuja carne é a mesma de todos os que a ele delegaram o cuidado de os defender.
        Em resumo, o homem abdica da liberdade dando plenos poderes ao Estado absoluto a fim de proteger a sua própria vida. Além disso, o Estado deve garantir que o que é meu me pertença exclusivamente, garantindo o sistema da propriedade individual. Aliás, para Hobbes, a propriedade privada não existia no estado de natureza,  onde todos têm direito a tudo e na verdade ninguém tem direito a nada.
        O poder do Estado se exerce pela força, pois só a iminência do castigo pode atemorizar os homens. "Os pactos sem a espada (sword) não são mais que palavras (words)."
        Investido de poder, o soberano não pode ser destituído, punido ou morto. Tem o poder de prescrever as leis, escolher os conselheiros, julgar, fazer a guerra e a paz, recompensar e punir. Hobbes preconiza ainda a censura, já que o soberano é juiz das opiniões e doutrinas contrárias à paz.
        E quando, afinal, o próprio Hobbes pergunta se não é muito miserável a condição de súdito diante de tantas restrições, conclui que nada se compara à condição dissoluta de homens sem senhor ou às misérias que acompanham a guerra civil.

     Uma interpretação

        Embora Hobbes defenda o Estado absoluto, e sob esse aspecto esteja distante dos interesses da burguesia que aspira ao poder e luta contra o absolutismo dos reis, é possível descobrir no pensamento hobbesiano alguns elementos que denotam os interesses burgueses.
        Por exemplo, a doutrina do direito natural do homem é uma arma apropriada para ser utilizada contra os direitos tradicionais da classe dominante, ou seja, a nobreza. Da mesma forma, a defesa da representatividade baseada no consenso significa a aspiração de que o poder não seja privilégio de classe. Além disso, o Estado surge de um contrato, o que revela o caráter mercantil, comercial, das relações sociais burguesas. O contrato surge a partir de uma visão individualista do homem, pois, de acordo com essa concepção, o indivíduo preexiste ao Estado (se não cronológica, pelo menos logicamente), e o pacto visa garantir os interesses dos indivíduos, sua conservação e sua propriedade. Se no estado de natureza "não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu", no Estado de soberania perfeita a liberdade dos súditos está naquelas coisas que o soberano permitiu, "como a liberdade de comprar e vender, ou de outro modo realizar contratos mútuos; de cada um escolher sua residência, sua alimentação, sua profissão, e instruir seus filhos conforme achar melhor, e coisas semelhantes". Portanto, o Estado se reduz à garantia do conjunto dos interesses particulares.
        Nessa linha de raciocínio, o professor Macpherson desenvolveu a teoria segundo a qual o contrato surge como decorrência da atribuição de uma qualidade possessiva ao homem que, por natureza, tem medo da morte, anseia pelo viver confortável e pela segurança e é movido pelo instinto de posse e desejo de acumulação.
        Segundo Macpherson, a qualidade possessiva do individualismo do século XVII "se encontra na sua concepção do indivíduo como sendo essencialmente o proprietário de sua própria pessoa e de suas próprias capacidades, nada devendo à sociedade por elas. (...) A sociedade torna-se uma porção de indivíduos livres e iguais, relacionados
entre si como proprietários de suas próprias capacidades e do que adquiriram mediante a prática dessas capacidades. A sociedade consiste de relações de troca entre proprietários. A sociedade política torna-se um artifício calculado para a proteção dessa propriedade e para a manutenção de um ordeiro relacionamento de trocas
        Como vemos, mesmo que Hobbes defenda o Estado absoluto, já são perceptíveis em seu discurso alguns dos elementos que marcarão o pensamento burguês e liberal daí em diante: o individualismo, a garantia da propriedade e a preservação da paz e segurança indispensáveis para os negócios.

       Pensamentos divergentes

        A noção de Estado moderno começa a se configurar mais claramente no Renascimento, tendo sido exaltado o Estado como potência plena desde Maquiavel até Hobbes, passando por Jean Bodin (1530-1596) e Hugo Orócio (1583-1645). No entanto, outros autores elaboram um contra discurso que denuncia os perigos do poder absoluto.
        No século XVI, na obra A utopia, Thomas More critica de forma metafórica o poder arbitrário do rei inglês Henrique VIII.
        Na Prança, nesse mesmo século, Etienne de La Hoétie, em Discurso da servidão voluntária, antecipa questões que serão colocadas no século XX a propósito dos governos totalitários. Perplexo, La Hoétie se pergunta pela razão que levaria o homem à obediência, à "servidão voluntária": "Gostaria apenas que me fizessem compreender como é possível que tantos homens, tantas cidades, tantas nações às vezes suportem tudo de um Tirano só, que tem apenas o poderio que lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto aceitam suportá-lo, e que não poderia fazer-lhes mal algum se não preferissem, a contradizê-lo, suportar tudo dele".
        No século XVII, o holandês Baruch Spinoza desenvolve uma teoria política que se contrapõe à de Hobbes, por criticar o pacto: todo reconhecimento a um governo deve ser provisório e nada justifica que cada um renuncie aos poderes individuais.
        Para Spinoza, a sociedade civil que resulta da união de todos deve ser a que dará maior poder a todos, cujas ações reguladas pelas leis e pelas assembléias poderão levar à paz baseada na concórdia e não na simples supressão das hostilidades pela intimidação. A noção de súdito passivo, Spinoza opõe a do cidadão com liberdade para pensar e agir.


O PENSAMENTO LIBERAL

O que é liberalismo


Nós temos por testemunho as seguintes verdades: todos os homens são iguais: foram aquinhoados pelo seu Criador com certos direitos inalienáveis e entre esses direitos se encontram o da vida, da liberdade e da busca da felicidade. Os governos são estabelecidos pelos homens para garantir esses direitos, e seu justo poder emana do consentimento dos governados. Todas as vezes que uma forma de governo torna-se destrutiva desses objetivos, o povo tem o direito de mudá-lo ou de abolir, e estabelecer um novo governo, fundando-o sobre os princípios e sobre a forma que lhe pareça a mais própria para garantir-lhe a segurança e a felicidade."
(Trecho da Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, reflexo na América dos ideais liberais iniciados pela Revolução Gloriosa em 1688, na Inglaterra)

1.        A história

        No século XVII, enquanto o absolutismo triunfa na França, a Inglaterra sofre as revoluções lideradas pela burguesia, que visam limitar a autoridade dos reis.
A primeira foi a Revolução Puritana, em meados do século em questão, culminando com a execução do rei Carlos I e a ascensão de Cromwell. Mas a liquidação do absolutismo se dá mesmo com a Revolução Gloriosa, em 1688, quando Guilherme iii é proclamado rei, após ter aceito a Declaração de Direitos que limitava muito sua autoridade e dava mais poderes ao parlamento. Ficava, portanto, o poder executivo subordinado ao legislativo.
        As conquistas burguesas exigem do rei a convocação regular do parlamento, sem o qual ele não pode fazer leis ou revogá-las, cobrar impostos ou manter um exército. Institui-se ainda o habeas corpus a fim de evitar as prisões arbitrarias; a partir de então, nenhum cidadão pode ficar preso indefinidamente sem ser acusado diante dos tribunais, a não ser por meio de denúncia bem-definida.
        Tais idéias subvertem as concepções políticas no século XVII e XVIII. No Novo Mundo, os movimentos de emancipação das colônias são bem-sucedidos, como a Independência dos Estados Unidos (1776), enquanto outros são violentamente reprimidos, como as Conjurações Mineira(1789) e Baiana (1798), ambas no Brasil. Na Europa,o grande acontecimento é a Revolução Francesa (1789), que, representando a luta contra os privilégios da nobreza e na defesa dos princípios de "igualdade, liberdade
e fraternidade", depõe a dinastia real dos Bourbon.

       As idéias

        Afinal, que idéias novas são essas?
        Na linguagem comum costumamos chamar de liberal ao homem generoso, tanto no sentido de não controlar gastos, como no sentido de não-autoritário. Chamamos também de profissões liberais as atividades de médicos, dentistas, advogados, quando trabalham por conta própria. Essa expressão deriva da antiga classificação das artes liberais, designando as atividades de homens livres, distintas dos ofícios manuais próprios de escravos.
        No entanto, aqui não nos interessam tais significados da palavra liberal, mas sim aqueles que indicam o conjunto de idéias éticas, políticas e econômicas da burguesia que se opunha à visão de mundo da nobreza feudal.
        Já nos referimos a algumas dessas transformações no capítulo anterior, quando tratamos da formação do Estado nacional e do esforço feito para tornar a política secular, laica, desligada dos interesses da religião. Mas se em um primeiro momento a formação das monarquias nacionais necessitava do Estado forte - o que de certa forma justificou o absolutismo real - a burguesia reivindicou sua própria autonomia quando se sentiu suficientemente fortalecida.
        O pensamento burguês busca a separação entre Estado e sociedade enquanto conjunto das atividades particulares dos indivíduos, sobretudo as de natureza econômica. O que se quer é separar definitivamente o público do privado, reduzindo ao mínimo a intervenção do Estado na vida de cada um. Por outro lado, essa separação deveria reduzir também a interferência do privado no público, já que o poder procura outra fonte de legitimidade que não seja a tradição e as linhagens de nobreza.
        Podemos nos referir ao liberalismo ético, enquanto garantia dos direitos individuais, tais como liberdade de pensamento, expressão e religião, o que supõe um estado de direito em que sejam evitados o arbítrio, as lutas religiosas, as prisões sem culpa formada, a tortura, as penas crueís.
        O liberalismo político constitui-se sobretudo contra o absolutismo real, buscando nas teorias contratualistas as formas de legitimação do poder, não mais fundado no direito divino dos reis nem na tradição e herança, mas no consentimento dos cidadãos. A decorrência dessa forma de pensar é o aperfeiçoamento das instituições do voto e da representação, a autonomia dos poderes e a consequente limitação do poder central. Veremos que as formas do liberalismo mudam com o tempo, começando de maneira muito elitista (restrita aos homens de posse) e ampliando-se a partir de pressões externas.
        O    liberalismo económico se opôs micialmente à intervenção do poder do rei nos negócios, que se dava por meio de procedimentos típicos da economia mercantilista tais como a concessão de monopólios e privilégios. Os primeiros a se insurgirem contra o controle da economia foram os fisiocratas, cujo lema era "laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui-même" ("deixai fazer, deixai passar, que o mundo anda por si mesmo"). Tais idéias são desenvolvidas pelos economistas ingleses Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823). O que se pretendia era a defesa da propriedade privada dos meios de produção e a economia de mercado, baseada na livre iniciativa e competição. O Estado mínimo, ou seja, o Estado não-intervencionista é considerado póssível porque o equilíbrio pode ser alcançado pela lei da oferta e da procura. Veremos mais adiante, no Capítulo 26 (Liberalismo e socialismo hoje), que nem sempre foi possível manter o Estado afastado do controle da economia.

 Locke

        Sendo os homens por natureza todos livres, iguais e independentes, ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar consentimento. A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela.
(Locke)


1.        Introdução

        John Locke (1632-1704), filósofo inglês, era médico e descendia de uma família de burgueses comerciantes. Esteve refugiado na Holanda, por ter-se envolvido  com pessoas acusadas de conspirar contra o rei Carlos II. Retornou à Inglaterra no mesmo navio em que viajava Guilherme de Orange, símbolo da consolidação da monarquia parlamentar inglesa.
         Locke teve papel importante na discussão sobre a teoria do conhecimento, tema privilegiado do pensamento moderno a partir de Descartes. A respeito desse assunto escreveu Ensaio sobre o entendimento humano, onde defende a teoria empirista. (Ver Terceira Parte do Capítulo 10- Teoria do conhecimento.) Com a obra Dois tratados sobre o governo civil, tornou-se o teórico da revolução liberal inglesa, cujas idéias iriam fecundar todo o século XVIII, dando fundamento filosófico às revoluções ocorridas na Europa e nas Américas.

      Estado de natureza e contrato

        Assim como Hobbes e posteriormente Rousseau, Locke parte da concepção individualista, pela qual os homens isolados no estado de natureza se uniram mediante contrato social para constituir a sociedade civil. Portanto, apenas o pacto torna legítimo o poder do Estado.
        Mas, diferentemente de Hobbes, não vê no estado de natureza uma situação de guerra e egoísmo, o que nos leva a indagar por que os homens abandonariam essa situação delegando o poder a outrem. Para Locke, no estado natural cada um é juiz em causa própria; portanto, os riscos das paixões e da parcialidade são muito grandes e podem desestabilizar as relações entre os homens. Por isso, visando a segurança e a tranquilidade necessárias ao gozo da propriedade, as pessoas consentem em instituir o corpo político.
        O ponto crucial do pensamento de Locke é que os direitos naturais dos homens não desaparecem em consequência desse consentimento, mas subsistem para limitar o poder do soberano,justificando, em última instância, o direito à insurreição: o poder é um trust, um depósito confiado aos governantes -  trata-se de uma relação de confiança - , e, se estes não visarem o bem público, é permitido aos governados retirá-lo e confiá-lo a outrem.

  Sociedade civil: a institucionalização do poder

        A concepção de sociedade civil - ou sociedade política, pois em Locke estes conceitos ainda não estão separados - representa um aspecto progressista do pensamento liberal, enquanto destaca a origem democrática, parlamentar do poder político. Ou seja, o poder está fundamentado nas instituições políticas, e não no  arbítrio dos indivíduos.
        Por exemplo, na Idade Média transmitia-se por herança tanto a propriedade como o poder político: o herdeiro do rei, do conde, do marquês, recebia não só os bens como também o poder sobre os homens que viviam nas terras herdadas. Locke estabelece a distinção entre o público e o privado, que devem ser regidos por leis diferentes. Assim, o poder político não deve, em tese, ser determinado pelas condições de nascimento, bem como o Estado não deve intervir, mas sim garantir e tutelar o livre exercício da propriedade, da palavra e da iniciativa econômica.
        Enquanto Hobbes destacava a soberania do poder executivo, Locke considera o legislativo o poder supremo, ao qual deve se subordinar tanto o executivo quanto o poder federativo (encarregado das relações exteriores). Note-se que ainda nesse momento não havia sido desenvolvida a teoria da autonomia dos tres poderes, o que ocorrerá apenas com Montesquieu.


  O conceito de propriedade

        Locke usa o conceito de propriedade num sentido muito amplo: "tudo o que pertence" a cada indivíduo, ou seja, sua vida, sua liberdade e seus bens.
        Como já observamos em Hobbes, encontra-se também em Locke uma característica que Macpherson chama de "individualismo possessivo", pelo qual "a essência humana é ser livre da dependência das vontades alheias, e a liberdade existe como exercício de posse". Assim, a primeira coisa que o homem possui é o seu corpo; todo homem  é proprietário de si mesmo e de suas capacidades. O trabalho do seu corpo é propriamente dele; portanto, o trabalho dá início ao direito de propriedade em sentido estrito (bens, patrimônio). Isso significa que, na concepção de Locke, todos são proprietários: mesmo quem não possui bens é proprietário de sua vida, de seu corpo, de seu trabalho.
        Entretanto, essa colocação ampla feita por Locke leva a certas contradições, pois o direito à ilimitada acumulação de propriedade produz logicamente um desequilíbrio na sociedade, criando um estado de classes que Locke dissimula- involuntariamente, é verdade - num discurso que se apresenta com um caráter universal. Quando se refere a todos os cidadãos, considerando-os igualmente proprietários, o discurso contém uma ambiguidade que não se resolve, pois ora identifica a propriedade à vida, liberdade e posses, ora a bens e fortuna especificamente. O que se conclui é que, se todos, tendo bens ou não, são considerados membros da sociedade civil,  apenas os que têm fortuna podem ter plena cidadania, por duas razões: "apenas esses (os de fortuna) têm pleno interesse na preservação da propriedade, e apenas esses são integralmente capazes de vida racional - aquele compromisso voluntário para com a lei da razão - que é a base necessária para a plena participação na sociedade civil. A classe operária, não tendo fortunas, está submetida à sociedade civil mas dela não faz parte. (...) A ambiguidade com relação a quem é membro da sociedade civil em virtude do suposto contrato original permite que Locke considere todos os homens como sendo membros, com a finalidade de serem governados, e apenas os homens de fortuna para a finalidade de governar"
       Ressalta-se aí o elitismo que persiste na raiz do liberalismo, já que a igualdade defendida é de natureza "abstrata, geral e puramente formal; não há possibilidade de igualdade real, quando só os proprietários têm plena cidadania.






- Montesquieu


A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem.Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder.
(Montesquieu)



1. O Iluminismo

        O  século xviii é marcado pelo conjunto de idéias do movimento conhecido como Ilustração que se espalha por toda a Europa (ver na Terceira Parte do Capítulo 10). A explosão das "luzes" foi preparado nos séculos anteriores com o racionalismo cartesiano, a revolução científica, o processo de laicização da política e da moral.
        Segundo Kant, um dos mais notáveis representantes do Aufkdilrung alemã, o homem iluminista atingiu a maioridade e, como dono de si mesmo, confia na sua capacidade racional e recusa qualquer autoridade arbitrária. Exalta a ciência e deposita esperança na técnica, instrumento capaz de dominar a natureza. Seu otimismo transparece na convicção de que a razão é fonte de progresso material, intelectual e moral, o que leva à crença e confiança na perfectibilidade do homem. Em síntese, pela razão universal o homem teria acesso à verdade e à felicidade. A difusão dessas idéias na França foi fa cilitada pela ampla produção intelectual dos filósofos conhecidos como enciclopedistas, tais como Diderot, D'Alembert, Voltaire e outros, embora, politicamente, a França se encontrasse ai rasada com relação aos avanços do liberalismo inglês, justificado teoricamente pela doutrina" de Locke e levado a efeito pela Revolução Gloriosa ainda em fins do século XVII.
        O absolutismo da dinastia Bourbon perdura na França até 1789, data da Revolução. Por isso, durante praticamente todo o século XVIII, os franceses visitam a Inglaterra para admirar suas instituições e elogiar a liberdade de consciência reinante.

      Autonomia dos poderes

        Montesquieu (1689-1755) nasceu perto de Bordéus, na França. Filho de
família nobre, o seu nome era Charles-Louis de Secondat, barão de la Brêde e posteriormente barao de Montesquieu.
        Teve formação iluminista com os padres oratorianos, de modo que cedo se mostrou um crítico severo e irônico da monarquia absolutista decadente, bem como do clero. Em Cartas persas, obra de sua juventude, satiriza o rei, o papa e a sociedade francesa do seu tempo.
        Sua obra mais importante é O espírito das leis, onde discute a respeito das instituições e das leis, e busca compreender a diversidade das legislações existentes em diferentes épocas e lugares. A pertinência das observações e a preocupação com o método permitem encontrar em seu trabalho elementos que prenunciam uma análise sociológica.
        Ao procurar descobrir as relações que as leis têm com a natureza e o princípio de cada governo, Montesquieu desenvolve uma alentada teoria do governo que alimenta as idéias fecundas do constitucionalismo, pelo qual se busca distribuir a autoridade por meios legais, de modo a evitar o arbítrio e a violência.
            Tais idéias se encaminham para a melhor definição da separação dos poderes, ainda hoje uma das pedras angulares do exercicio do poder democrático. Refletindo sobre o abuso do poder real, Montesquieu conclui que "só o poder freia o poder", daí a necessidade de cada poder - executivo, legislativo e judiciário - manter-se autônomo e constituído   por pessoas diferentes.
           É bem verdade que a proposta da divisão dos poderes ainda não se encontra em Montesquieu com a força que costumou-se posteriormente atribuir-lhe. Em outras passagens de sua obra, Montesqujeu não defende uma separação tão rígida, pois o que ele pretendia de fato era realçar a relação de forças e a necessidade de equilíbrio e harmonia entre os três poderes.
            Embora seu pensamento tenha sido apropriado pelo liberalismo burguês, as convicções de Montesquieu se referem aos interesses de sua classe e portanto o aproximam dos ideais de uma aristocracia liberal. Ou seja, ele critica toda forma de despotismo, mas prefere a monarquia moderada e não aprecia a idéia de o povo assumir o poder.
            Aliás, com exceção de Rousseau - cuja análise faremos a seguir - o pensamento liberal do século XVIII permanece censitário e portanto elitista. Mesmo para o ideal republicano de Kant, "o empregado doméstico, o balconista, o trabalhador, ou mesmo o barbeiro não são membros do Estado, e assim não se qualificam para ser cidadãos". É preciso esperar o século XIX para ver alterações nessa tendência.

Rousseau e a democracia direta

        O homem nasce livre e em toda parte encontra-se a ferros Toda nossa sabedoria consiste em preconceitos servis; todos os nossos usos são apenas sujeição, coação e constrangimento. O homem nasce, vive e morre na escravidão: ao nascer cosem-no numa malha; na sua morte pregam-no num caixão: enquanto tem figura humana é encadeado pelas nossas instituições. Eu senti antes de pensar. Observai a natureza e segui o caminho que ela vos traça. Ela exercita continuamente as crianças; endurece o seu temperamento com provas de toda espécie, e ensina-lhes, muito cedo, o que é uma dor e o que é um prazer.
(Rousseau)


1. Introdução

   Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filho de um relojoeiro de poucas posses, nasceu em Genebra (Suíça) e viveu a partir de 1742 em Paris, onde fervilhavam as idéias liberais que culminariam na Revolução Francesa (1789).
        Desde o primeiro momento em que se faz conhecer à intelectualidade francesa,Rousseau surpreende: ganha o prêmio oferecido pela Academia de Dijon ao discorrer sobre o tema O restabelecimento das ciências e  das artes terá contribuído para aprimorar os costumes?, respondendo pela negativa. Isso significa que não via com otimismo o desenvolvimento da técnica e do progresso, posição que é no mínimo polêmica, se lembrarmos que Rousseau vive em pleno Iluminismo e, portanto, entre homens confiantes no poder da razão humana para construir um mundo melhor .
        Fez amizade com Diderot, filósofo do grupo iluminista do qual participavam Voltaire, D'Alembert, D'Holbach, e que se tornavam conhecidos como enciclopedistas por terem elaborado a Enciclopédia ou Dicionário racional das ciências, das artes e dos ofícios-, que divulgava os novos ideais: tolerância religiosa, confiança na razão livre, oposição à autoridade excessiva, naturalismo, entusiasmo pelas técnicas e pelo progresso. Rousseau é convidado a escrever os verbetes sobre música - sua paixão anterior à filosofia mas sempre foi elemento destoante, pois divergia em muitos aspectos do pensamento iluminista, e teve, inclusive, sérios atritos com Voltaire.
        Precursor do romantismo, Rousseau valoriza demasiadamente o sentimento, num ambiente sobremaneira racionalista. Sempre foi um apaixonado, e a forma como expõe suas idéias revela a carga emocional derivada de uma sensibilidade exacerbada. Os leitores deixam-se contagiar por esse espírito agitado, - sua paixão anterior à filosofia mas sempre foi elemento destoante, pois divergia em muitos aspectos do pensamento iluminista, e teve, inclusive, sérios atritos e um de seus admiradores foi Robespierre, representante do setor mais radical e democrático da Revolução Francesa e que, contraditoriamente, instaurou o Terror.
        As principais idéias políticas de Rousseau estão nas obras Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e Do contrato sociaL. Espírito contraditório, elaborou as bases da pedagogia moderna com a obra Emilio, mas entregou seus cinco filhos a um orfanato.

       O estado de natureza

        Assim como seus antecessores Hobbes e Locke, Rousseau procura resolver a questão da legitimidade do poder fundado no contrato social. No entanto, sua posição é, num aspecto, inovadora, na medida em que distingue os conceitos de soberano e governo, atribuindo ao povo a soberania inalienável.
        No Discurso sobre a origem da desigualdade Rousseau cria a hipótese dos homens em estado de natureza, vivendo sadios, bons e felizes enquanto cuidam de sua própria sobrevivência, até o momento em que é criada a propriedade e uns passam a trabalhar para outros, gerando escravidão e miséria.
        Rousseau parece demonstrar extrema nostalgia do estado feliz em que vive o bom selvagem, quando é introduzida a desigualdade entre os homens, a diferenciação entre o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, o senhor e o escravo e a predominância da lei do mais forte. O homem que surge da desigualdade é corrompido pelo poder e esmagado pela violência.
        Trata.-se de um falso contrato, esse que coloca os homens sob grilhões. Há que se considerar a possibilidade de outro contato verdadeiro e legítimo, pelo qual o povo esteja reunido sob uma só vontade.


 O contrato social

        O contrato social, para ser legítimo, deve se originar do consentimento necessariamente unânime. Cada associado se aliena totalmente, ou seja, abdica sem reserva de todos os seus direitos em favor da comunidade. Mas, como todos abdicam igualmente, na verdade cada um nada perde, pois "este ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos são os votos da assembléia e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade".
        Em outras palavras, pelo pacto o homem abdica de sua liberdade, mas sendo ele próprio parte integrante e ativa do todo social, ao obedecer à lei, obedece a si mesmo e, portanto, é livre: "A obediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade". Isso significa que, para Rousseau, o contrato não faz o povo perder a soberania, pois não é criado um Estado separado dele mesmo. Como isto é possível?

Soberano e governo

        Mesmo quando cada associado se aliena totalmente em favor da comunidade, nada perde de fato, pois, enquanto POVO incorporado, mantém a soberania. Ou seja, soberano é, para Rousseau, o corpo coletivo que expressa, atravês da lei, a vontade geral. A soberania do povo, manifesta pelo legislativo, é inalienável, ou seja, não pode ser representada. A democracia rousseauísta considera que toda lei não ratificada pelo povo em pessoa é nula.
        Por isso, o ato pelo qual o governo é instituído pelo povo não submete este àquele. Ao contrário, não há um "superior", já que os depositários do poder não são senhores do povo, mas seus oficiais, podendo ser eleitos ou destituídos conforme a conveniência. Os magistrados que constituem o governo estão subordinados ao poder de decisão do soberano e apenas executam as leis, devendo haver inclusive boa rotatividade na ocupação dos cargos.
        Rousseau preconiza, portanto, a democracia direta ou participativa, mantida por meio de assembléias freqUentes de todos os cidadãos.
        Enquanto soberano, o povo é ativo e considerado cidadão. Mas há também uma soberania passiva, assumida pelo povo enquanto súdito. Então, o mesmo homem, enquanto faz a lei, é um cidadão e, enquanto a ela obedece e se submete, é um súdito.
        Além de inalienável, a soberania é também indivisível, pois não se pode tomar os poderes separadamente.


A vontade geral

        O soberano, sendo o povo incorporado, dita a vontade geral, cuja expressão é a lei. O que vem a ser a vontade geral? É preciso antes fazer distinção entre pessoa pública (cidadão ou súdito) e pessoa privada.
        A pessoa privada tem uma vontade individual que geralmente visa o interesse egoísta e á gestão dos bens particulares. Se somarmos as decisões baseadas nos benefícios individuais, teremos a vontade de todos.
        Mas cada homem particular também pertence a um espaço público, é parte de um corpo coletivo com interesses comuns, expressos pela vontade geral. Nem sempre o interesse de um coincide com o de outro, pois muitas vezes o que beneficia a pessoa privada pode ser prejudicial ao coletivo. Por isso, também não se pode confundir a vontade de todos com a vontade geral, pois a somatória dos interesses privados pode ter outra natureza que o interesse comum. Explicando melhor: de cada um enquanto componentes do corpo coletivo e exclusivamente nesta qualidade.Daí o perigo de predominar o interesse da maioria, pois se é sempre possível conseguir-se a concordância dos interesses privados de um grande número, nem por isso assim se estará atendendo ao interesse comum".
        Encontra-se aí o cerne do pensamento de Rousseau, aquilo que o faz reconhecer no homem um ser superior capaz de autonomia e liberdade, entendida esta como a superação de toda arbitrariedade, pois é a submissão a uma lei que o homem ergue acima de si mesmo. O homem é livre na medida em que dá o livre consentimento à lei. E consente por consider-lá a válida e necessária. "Aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto sera constrangido por todo um corpo, o que não significa senão que o forçarão a ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada cidadão à pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal."

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     Rousseau pedagogo

        Assim como imagina um homem em estado de natureza - pura hipótese de um ser primitivo que nunca existiu historicamente-, Rousseau também cria, ao elaborar o esboço de uma pedagogia, a figura de Emilio, modelo que o ajuda a procurar aquilo que o homem é antes de ser homem. Tudo se passa nesse romance como se o homem natural fosse o ideal que se submete à regra da educação.
        Para não correr o risco de ser contaminado por preconceitos, Emilio é educado por um preceptor à margem do contato pernicioso da sociedade, seguindo a ordem da própria natureza, não a natureza do selvagem, mas a verdadeira natureza que responde à vocação humana.
        A educação começa pelo desenvolvimento das sensações, dos sentimentos, pois, antes da "idade da razão" (15 anos, existe uma "razão sensitiva". É preciso não abafar os instintos, os sentidos, as emoções, os sentimentos que são anteriores ao próprio pensamento elaborado. A espontaneidade é valorizada e não há castigos, pois a experiência é a melhor conselheira. Por isso Rousseau não dá valor ao conhecimento livresco transmitido, pois quer que a criança aprenda a pensar por si própria.
        É assim que imagina Emilio chegando por si só às noções de bem e mal e às concepções morais e religiosas, já que tratar de religião antes do desenvolvimento suficiente da razão é correr o risco de idolatria.
        Costuma-se dizer que Rousseau provoca uma "revolução copernicana" na educação: tal como Copérnico, que ao propor a teoria heliocêntrica inverteu o centro do sistema astronômico, a concepção pedagógica rousseauísta não é magistocêntrica, pois não é o mestre que se encontra no centro do processo educativo; esse lugar é reservado à criança.
        Para ele, não se educa a criança nem para Deus, nem para a vida em sociedade, mas sim para si mesma: "Viver é o que eu desejo ensinar-lhe. Quando sair das minhas mãos, ele não será magistrado, soldado ou sacerdote, ele será, antes de tudo, um homem

     Rousseau revolucionário?

        A concepção política de Rousseau, como todo pensamento liberal, é tramada contra o absolutismo, mas ultrapassa o elitismo de Locke e propõe uma visão mais democrática de poder. Sem dúvida, empolgou políticos como Robespierre e até leitores como o jovem Marx.
        Os aspectos avançados do pensamento de Rousseau estão no fato de denunciar a violência daqueles que abusam do poder conferido pela propriedade, bem como por ter desenvolvido uma concepção mais democrática de poder, baseada na soberania popular e no conceito-chave de vontade geral.
        Com isso, Rousseau representajá no seu tempo a crítica ao modelo elitista do liberalismo e antecipa sob alguns aspectos as propostas de solução para as questões sociais que irão surgir no século XIX.
        Mesmo assim, Rousseau ainda é filho do seu tempo porque, ao partir da tese contratualista, de certa forma mantém a perspectiva individualista do pensamento burguês; ao denunciar a violência como resultado da natureza humana corrompida, mantém ainda a perspectiva de uma análise moral (e portanto pessoal) de um fenômeno que os teóricos socialistas a ele posteriores perceberão como resultante dos antagonismos sociais.


6. Conclusão

        É bom lembrar que, mesmo para o próprio Rousseau, o projeto da democracia direta só seria possível em uma sociedade de reduzidas proporções. No entanto, isso não significa que suas idéias são desprezíveis e utópicas, porque sempre é possível combinar os mecanismos da democracia representativa com alguns recursos da democracia direta.
        A professora Maria Victoria de Mesquita Benevides, ao defender a implantação da democracia semidireta, argumenta que "a maior parte das questões envolvidas na polêmica democracia representativa versus democracia direta é malposta, justamente porque traz implícita a alternativa radical - ou uma ou outra e não considera a possibilidade do sistema misto".No sistema misto da democracia semidireta, os mecanismos típicos de democracia direta atuariam como corretivos das distorções da representação política tradicional. Tais mecanismos são os conselhos populares, assembléias, experiências de autogestão e, na esfera do legislativo, o plebiscito, o referendo e o projeto de iniciativa popular.

O liberalismo do século XIX

Cada um é o único guardião autêntico da própria saúde, tanto física, quanto mental e espiritual.
(Stuart Mill)


1. Introdução

        No século XIX, as exigências democráticas não eram apenas da nova classe dos burgueses, mas também dos operários, cujo número crescia consideravelmente, já que a Revolução Industrial (século XVIII) aumentara a concentração urbana, Os operários, organizados em sindicatos e influenciados por idéias socialistas, exigem melhores condições de trabalho.
        As novas formas de organização de massa dão a tônica do pensamento político do século XIX, que pretende se configurar como liberalismo democrático. O enfoque da liberdade baseada na propriedade - caraterística do liberalismo elitista dos séculos anteriores - é desviado para a exigência de igualdade, procurando estender a liberdade a um número cada vez maior de pessoas por meio da legislação e de garantias jurídicas.
        As reivindicações de igualdade se manifestam das mais vaiadas formas:
        -  na defesa do sufrágio universal, ampliação das formas de representação (partidos, sindicatos), pressões para reformas eleitorais;
        -  na exigência de liberdade de imprensa;
        - na implantação da escola elementar universal, leiga, gratuita e obrigatória, cuja luta se torna bem-sucedida na Europa e nos EUA.
        No entanto, não há como negar que o liberalismo nasceu não-democrático, na medida em que sempre desconfiou do governo popular, sustentando o voto censitário pelo qual excluia do poder os não-proprietários.
        No século XIX podemos notar claramente os dois sentidos do movimento que até hoje dilacera o pensamento liberal: a permanência do liberalismo conservador que defende a liberdade, mas não a democracia (ou seja, não é um liberalismo com aspirações igualitárias); e o liberalismo radical que, além da liberdade, defende  a igualdade. É este último liberalismo que, nas formas mais extremas, se aproxima, no século XX, das concepções do Estado de bem-estar social e do socialismo liberal.
        Os principais teóricos do liberalismo no século XIX foram:
        - nos Estados Unidos - Thomas Jefferson e Thomas Paine;
        - na França - Tocqueville;
        - na Inglaterra - Jeremy Bentham, James Mill e seu filho John Stuart Mill.


O liberalismo francês

        Enquanto na Inglaterra e nos Estados Unidos as instituições políticas e sociais consolidam pacificamente os ideais liberais, a França passa no século XIX  por experiências difíceis e contraditórias, após a esperança de "liberdade, igualdade e fraternidade" representada pela Revolução Francesa. Afinal, o jacobinismo de Robespierre declaradamente ultrademocrático havia descambado no Terror; depois disso houve a ascensão e queda de Napoleão Bonaparte, coroado imperador. Mais tarde, com Napoleão III, a França entra no Segundo Império, distanciando-se cada vez mais dos ideais democráticos. Era natural que surgissem liberais conservadores, temerosos da tênue separação existente entre democracia e tirania.
        Alexis de Tocqueville (1805-1859), aristocrata de nascimento e conhecido como o "Montesquieu do século XIX", soube analisar com lucidez espantosa as contradições do seu tempo. Visitou por um ano os Estados Unidos, onde recolheu informações para sua obra mais famosa, Democracia na América.
        Tocqueville tinha plena consciência de que a implantação da democracia era inevitável, mas lastimava essa tendência que, segundo ele, levaria ao risco da "tirania da maioria", a um nivelamento cuja consequência seria o despotismo e ao conformismo da opinião. A democracia faria prevalecer a força do número sobre a individualidade.
        Tocqueville admitia claramente o desprezo pelas classes médias, o que constituía um traço aristocrático da visão de mundo daquele nobre senhor de terras. Em uma anotação pessoal exprimia: "Tenho pelas instituições democráticas uma preferência cerebral, mas sou aristocrata por instinto, e isto significa que desprezo e temo a multidão. Amo apaixonadamente a liberdade, a legalidade, o respeito pelos direitos, mas não a democracia".

        O intelectual brasileiro José Guilherme Merchior diz o que significa para Tocqueville a palavra democracia: "Algumas vezes, ele empregou o termo em seu sentido político normal, de um sistema representativo fundado num amplo sufrágio. Mas, com mais frequência, o empregou como um sinônimo para sociedade igualitária, coisa com que ele não designava uma sociedade de iguais, mas uma sociedade em que a hierarquia já não era a regra do princípio aceito de estrutura social".


 O liberalismo inglês

        Jeremy Bentham (1748-1832) é o fundador de uma escola chamada utilitarismo. Sofrendo a influência empirista, a teoria utilitarista pretende ser um instrumento de renovação social, a partir de um método rigorosamente científico.
        Bentham substitui a teoria do direito natural, típica dos filósofos contratualistas do século anterior, pela teoria da utilidade: o cidadão só deve obedecer ao Estado quando a obediência contribui para a felicidade geral.
        Critica as formas liberais que levam ao egoismo. Aliás, para ele, o objetivo da moral é o controle do egoísmo, e a virtude é o que am plia os prazeres e diminui as dores, donde resulta uma "aritmética moral": é preciso fazer um cálculo entre duas ações para saber qual delas reúne maior número de prazeres e menor quantidade de dores. Da mesma forma, o governo deve concordar com o principio de utilidade, e sua finalidade é alcançar a felicidade para um número maior de pessoas.
        Por isso os objetivos do governo sao: prover a subsistência, produzir a abundância, favorecer a igualdade e manter a segurança. Para tanto é necessário que haja eleições periódicas, sufrágio livre e  universal, liberdade de contrato.
        Bentham também se tornou conhecido por ter imaginado o Panopticon (que significa "ver tudo"), construção com uma torre de controle central e um prédio cheio de janelas onde seriam confinadas pessoas que precisariam ser vigiadas constantemente, tais como loucos, doentes, condenados., operários ou estudantes. Michel Foucault, filósofo francês contemporâneo, em sua obra Microfísica do poder identifica o projeto de Bentham ao processo iniciado na Idade Moderna pelo qual é constituída a "sociedade disciplinar", baseada no controle e vigilância na fábrica, na escola, na prisão, no hospício, no exército, e que tão bem irá caracterizar a forma de poder pela qual a burguesia exerce sua hegemonia.
        John Stuart Mil (1806-1873) segue inicialmente a corrente utilitarista, na qual foi iniciado por seu pai, James Mill, mas a modifica profundamente, já que sofreu outras influências, desde o positivismo de Comte ao socialismo de Saint-Simon.
        Embora amigo e admirador de Tocqueville, Stuart MilI desenvolve o liberalismo na linha de aspiração democrática. Preocupa-se com o destino das massas oprimidas e defende a co-participação na indústria bem como a representação proporcional na política a fim de permitir a expressão das opiniões minotárias. . Foi acirrado defensor da absoluta liberdade de expressão, do pluralismo e da diversidade, e considerava importante o debate das teorias conflitantes.
        Com a influência de sua mulher, Harriet Taylor, feminista e socialista, participou da fundação da primeira sociedade defensora do direito de voto para as mulheres.

 Stuart Mill  participou da fundação de uma sociedade defensora do direito devoto para as mulheres. Tal preocupação, entre outras, decorria do caráter reformista do liberalismo democrático do século XIX, que procurava incorporar muitas das idéias levantadas pelo movimento socialista.

As contradições do século XIX

        Embora as teorias liberais do século XIX, em comparação com as anteriores, representem um avanço em direção às idéias de igualdade, surgem inúmeras contradições. Nem sempre a implantação das idéias liberais consegue conciliar os interesses econômicos aos aspectos éticos e intelectuais que essas mesmas teorias defendem.
        Nos grandes centros da Europa, apesar da difusão das idéias democráticas, permanecem sem solução questões econômicas e sociais que afligem a crescente massa de operários: pobreza, jornada de trabalho de quatorze a dezesseis horas, mão-de-obra mal paga de mulheres e crianças.
        Da mesma forma, a expansão do capitalismo estimula as idéias imperialistas que justificam a colonização da África e da Ásia e por isso os países europeus "democráticos" não querem abrir mão do controle econômico e político sobre suas colônias. O próprio Stuart Mill argumentava que a idéia de governo democrático se  ajustava apenas aos hábitos dos povos avançados, sobretudo os brancos.
        No Brasil, os movimentos liberais naquele período se restringem à luta pela liberalização do comércio que deseja sacudir o jugo do monopólio. Mas permanece ainda a sociedade escravista, a tradição das elites e o analfabetismo, inclusive como condição para a manutenção do tipo de economia agrária.
        A contrapartida do discurso liberal será encontrada nas teorias socialistas, representadas inicialmente pelos chamados socialistas utópicos e, depois, pelo socialismo científico de Marx e Engels, que, em 1848, publicaram o ManIfesto comunista. Do mesmo modo, as Internacionais Operárias (a primeira é de 1864) e a Comuna de Paris (1871) são reflexo da busca de uma nova ordem, distinta da ordem estabelecida, e de um discurso que contenha a crítica ao Estado burguês.




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