ENTRE O BEM E O MAL
Os
valores
Diante de
pessoas e coisas, estamos constantemente fazendo juízos de valor. Esta caneta é
ruim, pois falha muito. Esta moça é atraente. Este vaso pode não ser bonito,
mas foi presente de alguém que estimo bastante, por isso, cuidado para não
quebrá-lo! Gosto tanto de dia chuvoso, quando não preciso sair de casa! Acho
que João agiu mal não ajudando você. Isso significa que fazemos juízos de
realidade, dizendo que esta caneta, esta moça, este passo existem, mas também
emitimos juízos de valor quando o mesmo conteúdo mobiliza nossa atração ou
repulsa. Nos exemplos, feriu, entre outros, a valores que encarnam a utilidade,
a beleza, a bondade.
Mas o que são
valores? Embora a preocupação com os valores seja tão antiga como a humanidade,
só no século XIX surge uma disciplina específica, a teoria dos valores ou
axiologia (do grego azul, "valor"). A axiologia não se ocupa dos
seres, mas das relações que se estabelecem entre os seres e o sujeito que os
aprecia.
Diante dos
seres (sejam eles coisas inertes, ou seres vivos, ou idéias etc.) somos
mobilizados pela afetividade, somos afetados de alguma forma por eles, porque
nos atraem ou provocam nossa repulsa. Portanto, algo possui valor quando não
permite que permaneçamos indiferentes.
É nesse sentido que Garcia Morente diz: "Os valores não
são, mas valem.
Uma coisa é valor e outra coisa é ser. Quando dizemos de
algo que vale, não dizemos nada do seu ser, mas dizemos que não é indiferente.
A não-indiferença constitui esta variedade ontológica que contrapõe o valor ao
ser. A não-indiferença é a essência do valer" Os valores são, num primeiro momento,
herdados por nós.
O mundo cultural é
um sistema de significados já estabelecidos por outros, de tal modo que
aprendemos desde cedo como nos comportar a mesa, na rua, diante de estranhos,
como, quando e quanto falar em determinadas circunstâncias: como andar, correr,
brincar; como cobrir o corpo e quando desnudá-lo; qual o padrão de beleza; que
direitos e deveres temos. Conforme atendemos ou transgredimos os padrões, os
comportamentos são avaliados como bons ou maus.
A partir da
valoração, as pessoas nos recriminam por não termos seguido as formas da boa
educação ao não ter cedido lugar à pessoa mais velha; ou nos elogiam por
sabermos escolher as cores mais bonitas para a decoração de um ambiente; ou nos
admoestam por termos faltado com a verdade. Nós próprios nos alegramos ou nos
arrependemos ou até sentimos remorsos dependendo da ação praticada. Isso quer
dizer que o resultado de nossos atos está sujeito à sanção, ou seja, ao elogio
ou à reprimenda, à recompensa ou à punição, nas mais diversas intensidades,
desde "aquele" olhar da mãe, a crítica de um amigo, a indignação ou
até a coerção física (isto é, a repressão pelo uso da força).
Embora haja
diversos tipos de valores (econômicos, vitais, lógicos, éticos, estéticos,
religiosos), consideramos neste capítulo apenas os valores éticos ou morais.
A moral
Os conceitos
de moral e ética, embora sejam diferentes, são com frequência usados como
sínônimos. Aliás, a etimologia dos termos é semelhante: moral vem do latim mos,
moris, que significa "maneira de se comportar regulada pelo uso", daí
"costume", e de moralis, morale, adjetivo referente ao que é
"relativo aos costumes". Ética vem do grego ethos, que tem o mesmo
significado de "costume".
Em sentido bem
amplo, a moral é o conjunto das regras de conduta admitidas em determinada
época ou por um grupo de homens. Nesse sentido, o homem moral é aquele que age
bem ou mal na medida em que acata ou transgride as regras do grupo.
A ética ou
filosofia moral é a parte da filosofia que se ocupa com a reflexão a respeito
das noções e princípios que fundamentam a vida moral. Essa reflexão pode seguir
as mais diversas direções, dependendo da concepção de homem que se toma como
ponto de partida.
Então, à
pergunta "O que é o bem e o mal?", respondemos diferentemente, caso o
fundamento da moral esteja na ordem cósmica, na vontade de Deus ou em nenhuma
ordem exterior à própria consciência humana. Podemos perguntar ainda: Há uma
hierarquia de valores? Se houver, o bem supremo é a felicidade? É o prazer? É a
utilidade?
Por outro
lado, é possível questionar: Os valores são essências? Têm conteúdo
determinado, universal, válido em todos os tempos e lugares? Ou, ao contrário,
são relativos: "verdade aquém, erro além dos Pireneus", como dizia
Pascal? Ou, ainda, haveria possibilidade de superação das duas posições
contraditórias do universalismo e do
relativismo?
As respostas a
essas e outras questões nos darão as diversas concepções de vida moral
elaboradas pelos filósofos através dos tempos.
3. Caráter histórico e social da moral
A fim de
garantir a sobrevivência, o homem submete a natureza por meio do trabalho. Para
que a ação coletiva se torne possível, surge a moral, com a finalidade de
organizar as relações entre os indivíduos.
Inicialmente,
consideremos a moral como o conjunto de regras que determinam o comportamento
dos indivíduos em um grupo social.
É de tal
importância a existência do mundo moral que se torna impossível imaginar um
povo sem qualquer conjunto de regras. Uma das características fundamentais do
homem é ser capaz de produzir interdições (proibições). Segundo o antropólogo
francês Lévi-Strauss, a passagem do reino animal ao reino humano, ou seja, a
passagem da natureza à cultura, é produzida pela instauração da lei, por meio
da proibição do incesto. É assim que se estabelecem as relações de parentesco e
de aliança sobre as quais é construído o mundo humano, que é simbólico.
Exterior e
anterior ao indivíduo, há portanto a moral constituída, que orienta seu
comportamento por meio de normas. Em função da adequação ou não à norma estabelecida,
o ato será considerado moral ou imoral.
O
comportamento moral varia de acordo com o tempo e o lugar, conforme as
exigências das condições nas quais os homens se organizam ao estabelecerem as
formas efetivas e práticas de trabalho. Cada vez que as relações de produção
são alteradas, sobrevêm modificações nas exigências das normas de comportamento
coletivo.
Caráter pessoal da moral
No entanto, a
moral não se reduz à herança dos valores recebidos pela tradição. À medida que
a criança se aproxima da adolescência, aprimorando o pensamento abstrato e a
reflexão crítica, ela tende a colocar em questão os valores herdados. Algo
semelhante acontece nas sociedades primitivas, quando os grupos tribais
abandonam a abrangência da consciência mítica e desenvolvem o questionamento
racional.
A ampliação do
grau de consciência e de liberdade, e portanto de responsabilidade pessoal no
comportamento moral, introduz um elemento contraditório que irá, o tempo todo,
angustiar o homem: a moral, ao mesmo tempo que é o conjunto de regras que
determina como deve ser o comportamento dos indivíduos do grupo, é também a
livre e consciente aceitação das normas.
Isso significa
que o ato só é propriamente moral se passar pelo crivo da aceitação pessoal da
norma. À exterioridade da moral contrapõe-se à necessidade da interioridade, da
adesão mais íntima. Portanto, o homem, ao mesmo tempo que é herdeiro, é criador
de cultura, e só terá vida autenticamente moral se, diante da moral
constituída, for capaz de propor a moral constituinte, aquela que é feita
dolorosamente por meio das experiências vividas.
Nessa
perspectiva, a vida moral se funda numa ambiguidade fundamental, justamente a
que determina o seu caráter histórico. Toda moral está situada no tempo e
reflete o mundo em que a nossa liberdade se acha situada. Diante do passado que
condiciona nossos atos, podemos nos colocar à distância para reassumi-lo ou
recusá-lo.
A historicidade do homem não reside na mera continuidade no
tempo, mas constitui a consciência ativa do futuro, que torna possível a
criação original por meio de um projeto de ação que tudo muda.
Cada um sabe,
por experiência pessoal, como isso é penoso, pois supõe a descoberta deque as
normas, adequadas em determinado momento, tornam-se caducas e obsoletas em
outro e devem ser mudadas. As contradições entre o velho e o novo são vividas
quando as relações estabelecidas entre os homens, a produzirem sua existência
por meio do trabalho, exigem um novo código de conduta.
Mesmo quando
queremos manter as antigas normas, há situações críticas enfrentadas devido à
especificidade de cada acontecimento. Por isso a cisão também pode ocorrer a
partir do enredo de cada drama pessoal: a singularidade do ato moral nos coloca
em situações originais em que só e indivíduo livre e responsável é capaz de
decidir. Há certas "situações-limite", tão destacadas pelo
existencialismo, em que regra alguma é capaz de orientar a ação. Por isso é
difícil, para as pessoas que estão "do lado de fora", fazer a
avaliação do que deveria ou não ser
feito.
Caráter social e pessoal da moral
Como vimos, a análise dos fatos morais nos coloca diante de
dois pólos contraditórios: de um lado, o caráter social da moral, de outro, a
intimidade do sujeito.
Se aceitarmos
unicamente o caráter social da moral, sucumbimos ao dogmatismo e ao legalismo.
Isto é, ao caracterizar o ato moral como aquele que se adapta à norma
estabelecida, privilegiamos os regulamentos, os valores dados e não discutidos.
Nessa perspectiva, a educação moral visa apenas inculcar nas pessoas o medo às
consequências da não-observância da lei.
Trata-se, no
entanto, de vivência moral empobrecida, conhecida como farisaísmo: numa
passagem bíblica, um fariseu (membro de uma seita religiosa) louva o seu
próprio comportamento, agradecendo a Deus por não ser "como os
outros" que transgridem as normas. Tal formalismo muitas vezes está ligado
a pretensão e à hipocrisia.
Por outro
lado, se aceitarmos como predominante a interrogação do indivíduo que põe em
dúvida a regra, corremos o risco de destruir a moral, pois, quando ela depende
exclusivamente da sanção pessoal, recai no individualismo, na "tirania da
intimidade" e, consequentemente, no amoralismo, na ausência de princípios.
Ora, o homem não é um ser solitário, um Robinson Crusoé na
ilha deserta, mas "con-vive" com pessoas, e qualquer ato seu
compromete os que o cercam.
Portanto, é
preciso considerar os dois pólos contraditórios do pessoal e do social numa
relação dialética, ou seja, numa relação que estabeleça o tempo todo a
implicação recíproca entre determinismo e liberdade, entre adaptação e
desadaptação à norma, aceitação e recusa da interdição.
Para tanto, o
aspecto social é considerado sob dois pontos de vista. Em primeiro lugar,
significa apenas a herança dos valores do grupo, mas, depois de passar pelo
crivo da dimensão pessoal, o social readquire a perspectiva humana e madura que
destaca a ênfase na intersubjetividade essencial da moral. Isto é, quando
criamos valores, não o fazemos para nós mesmos, mas enquanto seres sociais que
se relacionam com os outros.
Essa questão é
importante sobretudo nos tempos atuais, quando nos encontramos no extremo
oposto das sociedades primitivas ou tradicionais, nas quais persiste a
homogeneidade de pensamento e valores. Hoje, nas cidades cosmopolitas, há
múltiplas expressões de moralidade, e a sabedoria consiste na aceitação tolerante
dos valores dos grupos diferentes, evitando o moralismo, que consiste na
tentação de impor nosso ponto de vista aos outros.
Isso não deve
ser interpretado como defesa do extremo relativismo em que todas as formas de
conduta são aceitas indistintamente. O professor José Arthur expressa: "Os
direitos do homem, tais como em geral têm sido enunciados a partir do século
XVIII, estipulam condições mínimas do exercício da moralidade. Por certo, cada
um não deixará de aferrar-se à sua moral; deve, entretanto, aprender a conviver
com outras, reconhecer a unilateralidade de seu ponto de vista. E com isto está
obedecendo à sua própria moral de uma maneira especialíssima, tornando os
imperativos categóricos dela como um momento particular do exercício humano de
julgar moralmente. Desse modo, a moral do bandido e a do ladrão tornam-se
repreensíveis do ponto de vista da moralidade pública, pois violam o princípio
da tolerância e atingem direitos humanos fundamentais"2.
2 José Arthur Gianotti, Moralidade pública e moralidade
privada, in Adauto Novaes (org.), Ética, p. 245.
O ato moral
Estrutura do ato
moral
A instauração
do mundo moral exige do homem a consciência crítica, que chamamos de
consciência moral. Trata-se do conjunto de exigências e das prescrições que
reconhecemos como válidas para orientar a nossa escolha: é a consciência que
discerne o valor moral dos nossos atos.
O ato moral é portanto constituído de dois
aspectos: o normativo e o fatual.
O normativo são as normas ou regras de
ação e os imperativos que enunciam o "dever ser
O fatual são os atos humanos enquanto se
realizam efetivamente.
Pertencem ao
âmbito do normativo regras como: "Cumpra a sua obrigação de estudar";
"Não minta"; "Não mate". O campo do fatual é a efetivação
ou não da norma na experiência vivida. Os dois pólos são distintos, mas
inseparáveis. A norma só tem sentido se orientada para a prática, e o fatual só
adquire contorno moral quando se refere à norma.
O ato efetivo
será moral ou imoral, conforme esteja de acordo ou não com a norma
estabelecida. Por exemplo, diante da norma "Não minta", o ato de
mentir será considerado imoral. Convém lembrar aqui a discussão estabelecida
anteriormente a respeito do social e do pessoal na moral. Nesse caso estamos
considerando que o ato só pode ser moral ou imoral se o indivíduo introjetou a
norma e a tornou sua, livre e conscientemente.
Considera-se
amoral o ato realizado à margem de qualquer consideração a respeito das normas.
Trata-se da redução ao fatual, negando o normativo. O homem "sem
princípios" quer pautar sua conduta a partir de situações do presente e ao
sabor das decisões momentâneas, sem nenhuma referência a valores. É a negação
da moral.
Convém
distinguir a postura amoral da não-moral, quando usamos outros critérios de
avaliação que não são os da moral. Por exemplo, quando é feita a avaliação estética
de um livro, a postura do crítico é não-moral; isso não significa que ele
próprio não tenha princípios morais nem que a própria obra não possa ser
imoral, mas o que está sendo observado é o valor da obra como arte. As
discussões a respeito do que é ou não é uma obra pornográfica se encontram
muitas vezes prejudicadas devido à intromissão da moral em campos onde não foi chamada,
o que muitas vezes tem justificado indevidamente a ação da censura.
O ato voluntário
Se o que
caracteriza fundamentalmente o agir humano é a capacidade de antecipação ideal
do resultado a ser alcançado, concluímos que é isso que torna o ato moral
propriamente voluntário, ou seja, um ato de vontade que decide pela busca do
fim proposto.
Nesse sentido,
é importante não confundir desejo e vontade. O desejo surge em nós com toda a
sua força e exige a realização; é algo que se impõe e, portanto, não resulta de
escolha. Já a vontade consiste no poder de parada que exercemos diante do
desejo. Seguir o impulso do desejo sempre que ele se manifesta é a negação da
moral e da possibilidade de qualquer vida em sociedade. Aliás, não é essa a
aprendizagem da criança, que, a partir da tirania do desejo, deve chegar ao
controle do desejo? Observe que não estamos dizendo repressão do desejo, pois a
repressão é uma força externa que coage, enquanto o controle supõe a autonomia do
sujeito que escolhe entre os seus desejos, os prioriza e diz: "Este fica
para depois"; "Aquele não devo realizar nunca"; "Este
realizo agora com muito gosto"...
O ato responsável
A complexidade
do ato moral está no fato de que ele provoca efeitos não só na pessoa que age,
mas naqueles que a cercam e na própria sociedade como um todo.
Portanto, para
que um ato seja considerado moral, ele deve ser livre, consciente, intencional,
mas também é preciso que não seja um ato solitário e sim solidário. O ato moral
supõe a solidariedade, a reciprocidade com aqueles com os quais nos
comprometemos. E o compromisso não deve ser entendido como algo superficial e
exterior, mas como o ato que deriva do ser total do homem, como uma "promessa" pela qual ele se encontra vinculado à
comunidade.
O dever e a liberdade
O comportamento moral é
consciente, livre e responsável. É também obrigatório, cria um dever. Mas a
natureza da obrigatoriedade moral não reside na exterioridade: é moral
justamente porque deriva do próprio sujeito que se impõe a necessidade do
cumprimento da norma. Pode parecer paradoxal, mas a obediência à lei livremente
escolhida não é prisão; ao contrário, é liberdade.
A consciência moral, como juiz interno,
avalia a situação, consulta as normas estabelecidas, as interioriza como suas
ou não, toma decisões e julga seus próprios atos. O compromisso humano que daí
deriva é a obediência à decisão.
No entanto, o
compromisso não exclui a não-obediência, o que determinará justamente o caráter
moral ou imoral do nosso ato. Por isso o filósofo existencialista Gabriel
Marcel diz: "O homem livre é o homem que pode prometer e pode trair",
Isso significa que, para sermos realmente livres, devemos ter a possibilidade
sempre aberta da transgressão da norma, mesmo daquela que nós mesmos
escolhemos. Para entendermos melhor, consideremos as noções de heteronomia e
autonomia.
A palavra
heteronomia (hetero. "diferente", e nomos, "lei") significa
a aceitação da norma que não é nossa, que vem de fora, quando nos submetemos
aos valores da tradição e obedecemos passivamente aos costumes por conformismo
ou por temor à reprovação da sociedade ou dos deuses. É característica do mundo
infantil viver na heteronomia. A autonomia
(auto, "próprio") não nega a influência externa e os determinismos,
mas recoloca no homem a capacidade de refletir sobre as limitações que lhe são
impostas, a partir das quais orienta a sua ação para superar os
condicionamentos. Portanto, quando decide pelo dever de cumprir uma norma, o
centro da decisão é ele mesmo, a sua própria consciência moral. Autonomia é
auto-determinação.
CAP 18: NINGUÉM NASCE MORAL
A teoria de Piaget
Para
compreendermos o que ocorre na adolescência, vamos utilizar a análise feita
pelo psicólogo suíço (e também filósofo) Jean Piaget (1896-1980). que
desenvolveu uma teoria conhecida como psicologia genética, base para o
desenvolvimento de fecundas práficas pedagógicas.
Segundo essa teoria, não há inteligência
inata, mas a gênese da razão, da afetividade e da moral se faz progressivamente
em estágios sucessivos em que a criança organiza o pensamento e o julgamento.
Por isso sua teoria e as que dela derivam são chamadas construtivistas, já que
o saber é construído pela criança, e não imposto de fora.
Embora por
questões didáticas tratemos separadamente a inteligência e a afetividade, elas
se acham imbricadas. Enquanto a afetividade é a mola, a energia, a força que
impulsiona a ação (tendências, desejos, amor. entusiasmo etc.), a inteligência
fornece os meios, esclarece os fins, disciplina a ação.
A fim de
compreender a psicogênese em linhas gerais, na evolução da lógica e da moral,
resumiremos o desenvolvimento mental da criança desde o nascimento até a
adolescência.
Vale lembrar,
no entanto, que as referências às idades se referem aos padrões de Genebra,
cidade onde Piaget fez suas observações e experiências. Dependendo do grupo
social a que pertença a criança, haverá variação nas faixas etárias, e pode
ser, como já dissemos, que as últimas etapas nem sejam atingidas.
Os quatro estágios
1º estágio:
sensório-motor
A maneira pela
qual o bebê (de zero a dois anos) conhece o mundo é sobretudo sensório-motora,
ou seja, predomina o desenvolvimento das percepções sensoriais e dos
movimentos, não se podendo ainda dizer que a criança pensa. Nesse estágio, a
inteligência do bebê evolui à medida que ele aprende a coordenar as sensações e
os movimentos.
Daí a
preocupação em estimular os sentidos com chocalhos, móbiles, brinquedos de
encaixe para coordenação motora, sem falarmos no esforço pessoal da criança em
engatinhar, subir nos móveis, andar e levar tudo à boca. Pode-se até dizer que
o bebê conhece o mundo levando coisas à boca, de tal forma que não há exagero
em afirmar que, para ele, "o mundo é uma realidade a sugar". Também
Freud se refere a esse período como constituindo a "fase oral",
quando a zona erógena (geradora de prazer) se localiza na boca.
Na relação do
bebê com as pessoas, há uma indiferenciação, ou seja, a separação entre ele e o
mundo não é percebida muito nitidamente. É como se ele fizesse parte de uma
totalidade da qual não consegue distinguir-se como sujeito individual. Podemos
ver a descoberta gradativa que faz do seu corpo quando, por volta dos três
meses, o encontramos, fascinado, olhando a própria mão. O psicanalista Lacan se
refere à "experiência do espelho", pela qual, por volta dos dezoito
meses, a criança reconhece a dualidade, descobrindo-se separada da mãe e de
todo o resto.
2º estágio: intuitivo
ou simbólico
O segundo
momento (dos dois aos sete anos) começa quando a lógica infantil sofre um
salto, resultante da descoberta do símbolo. A realidade pode então ser representada,
no sentido de que a palavra torna presente o que está ausente.
Nesse período
a inteligência é intuitiva porque não se encontra separada da experiência
vivida, isto é, não consegue transpor abstratamente o que foi vivenciado pela
percepção.
Por exemplo:
mesmo sabendo ir até a casa da avó, a criança é ainda incapaz de reproduzir o
caminho num conjunto de pequenos objetos tridimensionais de papelão (representando
casas, ruas, igrejas etc.). Isso acontece porque suas lembranças são motoras, e
a representação implica uma descentralização da experiência que se acha
centrada no próprio corpo da criança quando ela vai de fato à casa da avó.
Outra
evidência da incapacidade de abstração e descentralização (ou seja, de colocarse
do ponto de vista do outro) aparece quando pedimos à criança que imite nosso
gesto, estando defronte a ela: se levantamos a mão direita, ela levanta a
esquerda. repetindo a ação como um espelho.
Trata-se de
uma forma de inteligência egocêntrica, que persiste também no nível da
afetividade. O egocentrismo infantil não pode ser sumariamente confundido com
egoísmo:não é um defeito da criança, mas constitui a própria condição humana
nesse estágio. Egocentrismo significa estar centrado em si mesmo, tanto no
aspecto da afetividade como no do conhecimento. Em outras palavras, a criança é
o ponto de referência, pensa a partir de si.
Afetivamente
acha que o mundo gira em torno dela, quer todas as atenções, não reparte
brinquedos, quer o seu desejo satisfeito no instante em que se manifesta; a
conversa não é propriamente uma interação, pois é incapaz de discutir e de
ouvir o outro: o que há são verdadeiros "monólogos coletivos".
Freqüentemente, aos três ou quatro anos, é vista falando sozinha, com seus
brinquedos "animados".
Do ponto de
vista moral, de inicio não se pode dizer que exista a introjeção de regra
alguma: vive em um mundo que seria propriamente pré-moral. em que predomina a
anomia (ausência de leis). Além dos exemplos da sua relutância em aceitar as
regras do convívio social, é interessante lembrar que ainda não está pronta
para os jogos com regras. Após os três ou quatro anos, começa a tornar se capaz
de heteronomia, ou seja, de aceitar a norma exterior, tornando-se mais
sociável.
3º estágio: operações
concretas
No terceiro
estágio (de sete a doze anos), a lógica deixa de ser puramente intuitiva e
passa a ser operatória. Isso quer dizer que a criança é capaz de interiorizar a
ação (processo que não ocorria no exemplo da visita 'a casa da avó').
Passar da
intuição para a operação significa tornar-se capaz de constituir sistemas de
conjuntos, passíveis ainda de composição e revisão. É o processo que permite
realizar as operações matemáticas, perceber a relação lógica do sistema de
parentesco, classificar, tornar as intuições moveis e reversíveis. Ora, as
percepções intuitivas da primeira infância eram irreversíveis (lembrar o
exemplo da mão levantada); tornar essa percepção reversível é ser capaz de operacionalizá-la,
por exemplo, inverter mentalmente a sua própria posição, colocando-se no lugar
do outro.
A
operacionalização no terceiro estagio ainda é concreta, pois depende de certa
forma das percepções fornecidas pela intuição. achando-se presa à experiência vivida.
Mesmo assim, como vimos, o pensamento já se torna mais coerente e permite
construções lógicas mais aprimoradas.
A força do
egocentrismo diminui, pois o discurso lógico tende a ser mais objetivo,
estabelece o confronto com a realidade e com os outros discursos e procura alicerçar-se
em provas que ultrapassem o nível das explicações mitológicas da fase anterior,
O relato das histórias deixa de ser fragmentado e passa a apresentar organização
mais estruturada, com começo, meio e fim, já sendo possível um ínicio de discussão.
Do ponto de
vista afetivo, os progressos na sociabilidade são percebidos na formação dos grupos
que antes se baseavam na contiguidade. e agora são coesos e expressam formas
claras de companheirismo. Essa nova organização se dá sob a ação da liderança e
confronto de grupos antagônicos. Ilustram bem esse estágio o livro Os meninos
da rua Paulo (Ferenc Molnár) e o filme A guerra dos botões.
Do ponto de
vista moral afirma-se a heteronomia, com a introjeção das normas da família e
da sociedade. Também nos jogos essa tendência se revela de maneira clara na
preferência por aqueles de regras rígidas, como os de botão e bola de gude,
cujas normas são seguidas rigorosamente.
4º estágio: operações
formais
Finalmente, o
último estágio é o da adolescência. quando aparecem as características que
marcarão a vida adulta.
O pensamento
lógico atinge o nível das operações formais ou abstratas. Isso significa que,
além de interiorizar a ação vivida (fase das operações concretas), o
adolescente é capaz de distanciar-se da experiência, de tal forma que pode
pensar por hipótese. E o amadurecimento do pensamento formal ou
hipotético-dedutivo. O desenvolvimento da reflexão atinge tal estágio que torna
possível o pensamento científico, matemático e filosófico.
Exemplificando: as discussões entabuladas pelos jovens a respeito da
família podem partir das experiências vividas particularmente, mas se orientam
para a abordagem do tema geral e abstrato da família como instituição. A
teorização leva à crítica da própria vivência e à elaboração de um projeto de
mudança. Os debates se desenvolvem no
nível do discurso, da argumentação apoiada em conceitos.
O processo de
desprendimento da própria subjetividade é sinal de que o egocentrismo
intelectual está em vias de ser superado.
Afetivamente,
a superação se realiza pela coopera çao e pela reciprocidade. Os grupos em que
persistia a idéia de mando e obediência são substituídos por outros baseados na
discussão e no consenso.
A capacidade
de reflexão dá condições para o amadurecimento moral, pela organização autônoma
das regras e pela livre deliberação.
Reflexão,
discussão, reciprocidade, autonomia são termos que aqui se acham enlaçados.
Refletir é desdobrar o pensamento, é pensar duas vezes, é tematizar. É como se trouxéssemos
o outro para dentro de nós: refletir é discutir interiormente. Ora, isto é possível
porque de fato descobrimos o outro como um alter
ego, um outro sujeito, exterior a nós, capaz de uma argumentação que
respeitamos.
Da mesma
forma, a discussão é a exteriorização da reflexão. Se nos dispusermos a
discutir partindo do pressuposto de que não mudaremos de idéia, não haverá discussão,
mas "diálogo de surdos". Portanto, a discussão supõe reciprocidade:
disponibilidade para ouvir o outro, mas também preservação de nossa
individualidade e autonomia.
A construção da
consciência moral
Tanto a
afetividade como a inteligência resultam da conversão do egocentrismo
primitivo:
- a lógica
evolui das formas intuitivas ao pensamento abstrato;
- a
afetividade, do egocentrismo à reciprocidade e cooperação;
- da relação
entre as duas, a consciência moral evolui da anomia, passando pela heteronomia,
até atingir a autonomia. E o caminho percorrido pelo desejo até a construção da
vontade, suporte da vida livre e moral.
Por isso, só
na adolescência surge a possibilidade de um plano de vida. E, se o que caracteriza
o homem é a capacidade de fazer projetos, o adolescente se encontra aparelhado
intelectual e afetivamente para iniciar essa caminhada verdadeiramente humana.
Dizemos
iniciar, pois o desenvolvimento mental é um processo diferente do crescimento
orgânico. Este atinge o ápice no início da vida adulta, tem um período de
plenitude e tende à evolução regressiva que conduz à velhice. Os esportistas
sabem como é curta sua carreira e procuram "pendurar as chuteiras"
antes que os sinais da decadência apareçam muito fortemente.
Não é o que
acontece com o desenvolvimento mental, que amadurece na adolescência. As formas
superiores da inteligência e da afetividade têm um "equilíbrio móvel",
pois a tendência é ampliar cada vez mais a experiência, e esta por sua vez se
enriquece, aperfeiçoa a reflexão e a capacidade de se relacionar. A sabedoria do
homem maduro está nesse exercício inesgotável, e por isso ele não cessa nunca
de aprender: aprender a conhecer o mundo, aprender a liberdade, aprender o encontro
com o outro, aprender a democracia.
Tudo isso não
se faz automaticamente, pois é necessário aprendizagem. Se o adolescente não é
estimulado a desenvolver a reflexão crítica, mas, ao contrário, se encontra
submetido à educação dogmática (ou a nenhuma educação, como é ocaso dos
excluídos da escola), é provável que muito dificilmente atina os níveis
desejáveis do pensamento formal. Do mesmo modo, as pessoas devem ser educadas
para a cooperação, sob pena de permanecer infantilmente egocêntricas, o que não
é nada raro na sociedade individualista...
Assim, na fase de transição, em que se
acomoda a uma situação cujo equilíbrio móvel ainda não foi atingido, o
adolescente oscila entre o egocentrismo e a superação dele:vivendo a idade
metafísica por excelência, o egocentrismo intelectual reside justamente na
crença da onipotência da reflexão, como se não coubesse a ela explicar a
realidade, mas esta, sim, devesse se adaptar à razão.
Do ponto de
vista afetivo também há contradição, resultante da mistura constante de
devotamento à humanidade, como um todo abstrato, e intenso egoísmo.
A teoria de Kohlberg
Lawrence
Kohlberg (1927-1987) foi um americano que se dedicou ao estudo da teoria
piagetiana, centrando suas preocupações nas questões morais.
Expandiu as
experiências aplicando rico material em grupos de controle nos Estados Unidos,
Turquia, Israel, analisando essas pessoas por vários anos. Por exemplo, em
Chicago acompanhou um grupo de 75 meninos e rapazes que inicialmente tinham de
dez a dezesseis anos, por quinze anos, com entrevistas a cada três anos.
Uma das
diferenças do trabalho de Kohlherg em relação ao seu mestre está em que ele
rejeita a teoria do paralelismo entre a psicogênese do pensamento lógico e a psicogênese
da moralidade. Se o desenvolvimento do pensamento lógico formal é condição
necessária para a vida moral plena, não é. entretanto, condição suficiente. E
suas observações comprovam que a maturidade moral geralmente só é atingida
(quando é...) apenas pelo adulto, uns dez anos depois da adolescência. E que o
nível mais alto de moralidade exige estruturas lógicas novas e mais complexas
do que aquelas do pensamento formal.
Kohlberg reformula então a teoria dos estágios
morais, distinguindo três grandes níveis de moralidade: o pré-convencional, o
convencional e o pós-convencional.
No nível
pré-convencional as regras morais
derivam daqueles que as formulam, sua aceitação se baseia no reconhecimento da autoridade, orientando-se o comportamento a
partir dos critérios de obediência e de punição e recompensa.
No nível convencional é superada a fase anterior, valorizando-se o reconhecimento do
outro (grupo, família, nação): predominam as
expectativas interpessoais e a identificação com as pessoas do grupo a
que pertence.
No nível
pós-convencional os comportamentos são regulados por princípios. Os valores independem
dos grupos ou das pessoas que os sustentam, porque são princípios universais de
justiça: igualdade dos direitos humanos, respeito a dignidade dos seres humanos
como pessoas individuais, reconhecimento deque as pessoas são fins em si e
precisam ser tratadas como tal.
O resultado das pesquisas empíricas de Kohlberg levou a constatação de que um
percentual baixíssimo de cidadãos atingem tal nível de moralidade
pós-convencional.
Isso nos faz refletir a respeito das
condições sócio-econômicas que excluem uma população tão grande das escolas,
bem como nos leva a considerar que na sociedade competitiva e individualista
pode parecer utopia aspirar por valores como a justiça, baseados na
reciprocidade e no compromisso pessoal.
CAP. 19: PODEMOS SER LIVRES?
1. Mito, tragédia e
filosofia
Uma das
características da consciência mítica é a aceitação do destino: os costumes dos
ancestrais têm raízes no sobrenatural; as ações humanas são determinadas pelos
deuses; em consequência, não se pode falar propriamente em comportamento ético,
uma vez que falta a dimensão de subjetividade que caracteriza o ato livre e
autônomo.
Ao analisarmos
a passagem do mito à razão no Capítulo 7 vimos como se deu o processo do
advento da consciência critica. Mas há um período intermediário caracterizado
pela consciência trágica que representa o momento em que o mito não foi
totalmente superado e ainda não se firmou a consciência filosófica.
A tragédia
grega floresceu por curto período, e os autores mais famosos foram Ésquilo
(525-456a.C.), Sófocles (496-c.406a.C.) e Eurípedes (c.480-406a.C.). O conteúdo
das peças é retirado dos mitos, mas há algo de novo no tratamento que os
autores - sobretudo Sófocles - dão ao relato das façanhas dos heróis.
Tomemos por
exemplo a tragédia Édipo-Rei de Sófocles. Nela conta-se que Laio, senhor de
Tebas, soube pelo oráculo que seu filho recém-nascido haveria um dia de
assassiná-lo, casando-se em seguida com a própria mãe. Por isso, Laio
antecipa-se ao destino e manda matá-lo, mas suas ordens não são cumpridas, e a
criança cresce em Lugar distante. Quando adulto, Édipo consulta o oráculo e ao
tomar conhecimento do destino que lhe fora reservado, foge da casa dos supostos
pais a fim de evitar o cumprimento daquela sina. No caminho desentende-se com
um desconhecido - e o mata. Esse desconhecido era, sem que Édipo soubesse, seu
verdadeiro pai. Entrando em Tebas, casa com Jocasta, viúva de Laio, ignorando
ser ela sua mãe. E assim se cumpre o destino.
Mesmo que Sófocles tenha tomado
do mito o enredo da história, as figuras lendárias apresentam-se com a face
humanizada, agitam-se e questionam o destino. A todo momento emerge a força
nova da vontade que se recusa a sucumbir aos desígnios divinos e tenta
transcender o que lhe é dado com um ato de liberdade. E, mesmo quando a
intuição de Édipo lhe indica ser ele próprio o assassino procurado em Tebas,
leva o inquérito até o fim, como se estivesse em busca da própria identidade
("O dia de hoje te fará nascer e te matará").
Mas, se no
final vence o irracional, Édipo não foi um ser passivo. E a tragédia consiste
justamente na contradição entre determinismo e liberdade, na luta contra o
destino levada a cabo pelo homem que surge como um ser de vontade. Quando no
final Édipo se cega, diz:"Apolo me culminou com os mais horrorosos
sofrimentos. Mas estes olhos vazios não são obra dele, mas obra minha".
A tentativa de
reflexão retrata o logos nascente. Daí em diante a filosofia representará o
esforço da razão em compreender o mundo e orientar a ação.
2. A concepção grega de moral
No período
clássico da filosofia grega, os sofistas rejeitam a tradição mítica ao
considerar que os princípios morais resultam de convenções humanas. Embora na
mesma linha de oposição aos fundamentos religiosos, Sócrates se contrapõe aos
sofistas ao buscar aqueles princípios não nas convenções, mas na natureza
humana.
Inúmeros são
os diálogos de Platão em que são descritas as discussões socráticas a respeito
das virtudes e da natureza do bem. Resulta daí a convicção de que a virtude se
identifica com a sabedoria e o vício com a ignorância: portanto, a virtude pode
ser aprendida.
Na célebre
passagem de A República em que Platão descreve o mito da caverna (ver Primeira
Parte do Capítulo 10) reaparece essa idéia: o sábio é o único capaz de se
soltar das amarras que o obrigam a ver apenas sombras e, dirigindo-se para
fora, contempla o sol, que representa a idéia do Bem.
Portanto,
"alcançar o bem" se relaciona com a capacidade de "compreender
bem". Só o filósofo atinge o nível mais alto de sabedoria, só a ele cabe a
virtude maior da justiça e portanto lhe é reservada a função de governar.
Outras virtudes menores, mas também importantes para a cidade, caberão aos
soldados defensores da pólis e aos trabalhadores comuns, artesãos e
comerciantes.
Herdeiro do
pensamento de Platão, Aristóteles aprofunda a discussão a respeito das questões
éticas. Mas, para ele, o homem busca a felicidade, que consiste não nos
prazeres nem na riqueza, mas na vida teórica e contemplativa cuja plena
realização coincide com o desenvolvimento da racionalidade.
O que há de
comum no pensamento dos filósofos gregos é a concepção de que a virtude resulta
do trabalho reflexivo, da sabedoria, do controle racional dos desejos e
paixões.
Além disso, o
sujeito moral não pode ser compreendido ainda, como nos tempos atuais, na sua
completa individualidade. Os homens gregos são antes de tudo cidadãos, membros
integrantes de uma comunidade, de modo que a ética se acha intrinsecamente
ligada à política.
No período
helenista, os filósofos se ocupam predominantemente com questões morais, e
destacam-se duas tendências opostas, e hedonismo e o estoicismo.
Para os
hedonistas (do grego hedoné, "prazer"), o bem se encontra no prazer.
Mas,ao contrário do que se poderia supor, o principal representante do
hedonismo grego, Epicuro (341-270 a.C.), considera que os prazeres do corpo são
causas de ansiedade e sofrimento. Para permanecer imperturbável, a alma precisa
desprezar os prazeres materiais, o que leva Epicuro a privilegiar os prazeres
espirituais, dentre os quais aqueles referentes à amizade.
Na mesma
época, o estóico Zeno de Cítio (336-264 a.C.) despreza os prazeres em geral, ao
considerá-los fonte de muitos males. As paixões devem ser eliminadas porque só
produzem sofrimento e por isso a vida virtuosa do homem sábio, que vive de
acordo com a natureza e a razão, consiste em aceitar com impassibilidade o
destino e o sofrimento.
As teorias
estóicas foram bem aceitas pelo cristianismo ainda na época do Império Romano,
tendo também fecundado as idéias ascéticas do período medieval.
3. A moral iluminista
Durante a
Idade Média, a visão teocêntrica do mundo fez com que os valores religiosos
impregnassem as concepções éticas, de modo que os critérios do bem e do mal se
achavam vinculados à fé e dependiam da esperança de vida após a morte.
Na perspectiva
religiosa os valores são considerados transcendentes, porque resultam de doação
divina, o que determina a identificação do homem moral com o homem temente a Deus.
No entanto, a
partir da Idade Moderna, culminando no movimento da Ilustração no século XVIII,
a moral se torna laica, secularizada. Ou seja, ser moral e Ser religioso não
são pólos inseparáveis, sendo perfeitamente possível que um homem ateu seja moral,
e mais ainda, que o fundamento dos valores não se encontre em Deus, mas no
próprio homem.
O movimento
intelectual do século XVIII conhecido como Iluminismo, Ilustração ou Aujklãrung
e que caracteriza o chamado Sécúlo das Luzes exalta a capacidade humana de
conhecer e agir pela "luz da razão". Critica a religião que submete o
homem à heteronomia, que o subjuga a preconceitos e o conduz ao fanatismo.
Rejeita toda tutela que resulta do princípio de autoridade. Em contraposição,
defende o ideal de tolerância e autonomia.
No lugar das
explicações religiosas, a Ilustração fornece três tipos de justificação para a
norma moral: ela se funda na lei natural (teses jusnaturalistas), no interesse
(teses empiristas, que explicam a ação humana como busca do prazer e evitação
da dor) e na própria razão (tese kantiana).
Kant
A máxima
expressão do pensamento iluminista se encontra em Kant (1724-1804). que, além
da Crítica da razão pura (ver Terceira Parte do Capítulo 10), escreveu a
Crítica da razão prática e Fundamentação
da metafísica dos costumes, nas quais desenvolve a sua teoria moral.
A razão
prática diz respeito ao instrumento para compreender o mundo dos costumes e orientar
o homem na sua ação. Analisando os princípios da consciência moral, Kant
conclui que a vontade humana é verdadeiramente moral quando regida por
imperativos categóricos. O imperativo categórico é assim chamado por ser
incondicionado, absoluto, voltado para a realização da ação tendo em vista o
dever.
Nesse sentido,
Kant rejeita as concepções morais que predominam até então, quer seja da filosofia
grega, quer seja da cristã, e que norteiam a ação moral a partir de
condicionantes como a felicidade ou o interesse. Por exemplo, não faz sentido
agir bem com o objetivo de ser feliz ou evitar a dor, ou ainda para alcançar o
céu ou não merecer a punição divina.
O agir
moralmente se funda exclusivamente na razão. A lei moral que a razão descobre é
universal, pois não se trata de descoberta subjetiva (mas do homem enquanto ser
racional), e é necessária, pois é ela que preserva a dignidade dos homens. Isso
pode ser sintetizado nas seguintes afirmações do próprio Kant:"Age de tal
modo que a máxima de tua ação possa sempre valer como princípio universal de
conduta"; "Age sempre de tal modo que trates a Humanidade, tanto na
tua pessoa como na do outro, como fim e não apenas como meio".
A autonomia da
razão para legislar supõe a liberdade e o dever. Pois todo imperativo se impõe
como dever, mas a exigência não é heterônoma - exterior e cega e sim
livreniente assumida pelo sujeito que se autodetermina.
Vamos
exemplificar. Suponhamos a norma moral "não roubar:
·
para a concepção cristã o fundamento da norma se
encontra no sétimo mandamento de Deus;
·
para os
teóricos jusnaturalistas (como Rousseau) ela se funda no direito natural, comum
a todos os homens;
·
para os empiristas (como Locke, Condillac) a
norma deriva do interesse próprio, pois o sujeito que a desobedece será
submetido ao desprazer, à censura pública ou à prisão;
·
para Kant, a norma se enraíza na própria
natureza da razão; ao aceitar o roubo e consequentemente o enriquecimento
ilícito, elevando a máxima (pessoal) ao nível universal, haverá uma
contradição: se todos podem roubar, não há como manter a posse do que foi
furtado.
O pensamento de Kant foi importante para
fornecer as categorias da moral iluminista racional, laica, acentuando o
caráter pessoal da liberdade. Mas, a partir do final do século XIX e ao longo
do século XX, os filósofos começam a se posicionar contra a moral formalista
kantiana fundada na razão universal, abstrata, e tentam encontrar o homem
concreto da ação moral.
É nesse
sentido que podemos compreender o esforço de pensadores tão diferentes como
Marx, Nietzsche, Freud, Kierkegaard e os existencialistas.
4. Marx: a moral como superestrutura
No século XIX
as relações entre capitalistas e proletariado atingiram níveis agudos de antagonismo,
fazendo surgir os movimentos de massa e a tentativa de teorização desses
fenômenos, particularmente por duas ciências nascentes, a economia e a
sociologia.
Deriva daí a
preocupação empírica em examinar a situação concreta vivida pelos homens nas
suas relações sociais. Foi original a contribuição feita por Marx (ver Segunda
Parte do Capítulo 24) que, ao desenvolver a teoria do materialismo dialético,
considera que "o ser social determina a consciência", ou seja,
"o modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida
social, política e intelectual em geral". Isso significa que as expressões
da consciência humana - inclusive a moral - são o reflexo das relações que os
homens estabelecem na sociedade para produzirem sua existência, e portanto mudam
conforme se alteram os modos de produção.
Nesse sentido,
Marx desenvolve outra linha de pensamento, diferente da concepção tradicional
de moral que se orienta em direção aos valores universais aceitos em todas as
épocas. Ao contrário, Marx busca recuperar o homem concreto na atividade produtora
que determina relações de produção muito específicas conforme o tempo e o
lugar. Esse tipo de análise lhe permite observar que, onde existe sociedade
dividida em classes, com interesses antagônicos, a moral da classe dominante
predomina, impõe-se sobre a classe dominada e torna-se instrumento ideológico
para manter a dominação.
Por isso, só
na sociedade mais fraterna, sem a exploração de uma classe sobre outra, é que
se poderá esperar o surgimento de uma moral autêntica. Coerente com sua
concepção comunista, Marx preconiza que as condições da moral verdadeira só
existiriam na sociedade sem Estado e sem propriedade privada. Para ele, mesmo que
a moral diga respeito à esfera pessoal, não há como viver moralmente em um
mundo que ainda não tenha instaurado a ordem da justiça social.
5. Nietzsche: a transvaloração dos valores
O pensamento
de Nietzsche (1844-1900) se orienta no sentido de recuperar as forças
inconscientes, vitais, instintivas subjugadas pela razão durante séculos. Para
tanto, critica Sócrates por ter encaminhado pela primeira vez a reflexão moral
em direção ao controle racional das paixões. Segundo Nietzsche, nasce aí o
homem desconfiado de seus instintos, tendo essa tendência culminado com o
cristianismo, que acelerou a "domesticação" do homem.
Em diversas
obras, como Sobre a genealogia da moral, Para além do bem e do mal e Crepúsculo
dos idolos, em estilo apaixonado e mordaz, Nietzsche faz a análise histórica da
moral e denuncia a incompatibilidade entre esta e a vida. Em outras palavras, o
homem, sob o domínio da moral, se enfraquece, tornando-se doentio e culpado.
Nietzsche
relembra a Grécia homérica, do tempo das epopéias e das tragédias,
considerando-a como o momento em que predominam os verdadeiros valores
aristocráticos, quando a virtude reside na força e na potência, sendo atributo do
guerreiro belo e bom, amado dos deuses.
Nessa perspectiva,
o inimigo não é mau: "Em Homero, tanto o grego quanto o troiano são bons.
Não passa por mau aquele que nos inflige algum dano, mas aquele que é
desprezível".
Ao fazer a
crítica da moral tradicional, Nietzsche preconiza a "transvaloração de
todos os valores". Denuncia a falsa moral, "decadente", "de
rebanho", "de escravos", cujos valores seriam a bondade, a
humildade, a piedade e o amor ao próximo. Contrapõe a ela a moral "de
senhores", uma moral positiva que visa à conservação da vida e dos seus
instintos fundamentais.
A moral de
senhores é positiva, porque baseada no sim à vida, e se configura sob o signo
da plenitude, do acréscimo. Por isso se funda na capacidade de criação, de
invenção, cujo resultado é a alegria, consequência da afirmação da potência. O
homem que consegue superar-se é o Super-homem ( Uber,nensch, expressão alemã
que significa "além-do-homem", "sobre-humano", "que
transpõe os limites do humano").
À moral
aristocrática, moral de senhores, que é sadia e voltada para os instintos da
vida, Nietzsche contrapõe o pensamento socráticoplatônico (que provoca a
ruptura entre o trágico e o racional) e a tradição da religião judaico-cristã.
A moral que deriva daí é a moral de escravos, moral decadente porque baseada na
tentativa de subjugação dos instintos pela razão, O homem-fera, animal de
rapina, é transformado em animal doméstico ou cordeiro. A moral plebéia
estabelece um sistema de juízos que considera o bem e o mal valores metafísicos
transcendentes, isto é, independentes da situação concreta vivida pelo homem.
A moral de
escravos nega os valores vitais e resulta na passividade, na procura da paz e
do repouso. O homem se torna enfraquecido e diminuído em sua potência. A
alegria é transformada em ódio à vida, o ódio dos impotentes. A conduta humana,
orientada pelo ideal ascético, torna-se marcada pelo ressentimento e pela má
consciência.
O
ressentimento nasce da fraqueza e é nocivo ao fraco. O homem ressentido,
incapaz de esquecer, é como o dispêptico: fica "envenenado" pela sua
inveja e impotência de vingança. Ao contrário, o homem nobre sabe
"digerir" suas experiências, e esquecer é uma das condições de
manter-se saudável. A má consciência ou sentimento de culpa é o ressentimento
voltado contra si mesmo, daí fazendo nascer a noção de pecado, que inibe a
ação.
O ideal
ascético nega a alegria da vida e coloca a mortificação como meio para alcançar
a outra vida num mundo superior, do além. Assim, as práticas de altruísmo
destroem o amor de si, domesticando os instintos e produzindo gerações de
fracos.
"É por
isso que contra o enfraquecimento do homem, contra a transformação de fortes em
fracos - tema constante da reflexão nietzschiana - é necessário assumir uma
perspectiva além de bem e mal, isto é, "além da moral". Mas, por
outro lado, para além de bem e mal não significa para além de bom e mau. A
dimensão das forças, dos instintos, da vontade de potência, permanece
fundamental. "O que é bom? Tudo que intensifica no homem o sentimento de
potência, a vontade de potência, a própria potência. O que é mau? Tudo que
provém da fraqueza."
R. Machado, Nietzsche e a verdade, p. 77.
6. Freud: as ilusões da consciência
As crenças
racionalistas do poder que o homem teria de controlar os desejos e tornar-se o
centro de suas próprias decisões foram seriamente abaladas pela teoria
psicanalítica desenvolvida por Sigmund Freud (1856-1939). Já vimos um pouco de
seu pensamento no Capítulo 16 (As ciências humanas) e examinaremos outros
aspectos no Capitulo 34 (O erotismo).
Ao levantar a
hipótese do inconsciente, Freud descobre o mundo oculto da vida das pulsões,
dos desejos, da energia primária da sexualidade e agressividade que se
encontram na raiz de todos os comportamentos humanos, mesmo daqueles que à
primeira vista não aparecem como sendo de natureza sexual.
Para Freud, o
ego, enquanto instância consciente da personalidade, é de tal forma pressionado
por conflitos entre as forças pulsionais (vindas do id) e as regras sociais
(introjetadas pelo superego), que nem sempre pode agir equilibradamente. Ao
explicar os mecanismos da repressão, Freud revela que o neurótico não age
plenamente consciente dos determinantes da sua ação. Ora, se a moral supõe a
autonomia, nada mais distante disso do que o comportamento resultante da
repressão dos impulsos.
Não resta
dúvida de que o amplo desenvolvimento da psicanálise levou a uma nova concepção
de moral cada vez mais orientada na direção do homem concreto, com ênfase nos
valores da vida e da espontaneidade, o que certamente ajudou na superação de
preconceitos e comportamentos hipócritas, bem como na valorização do corpo e
das paixões.
Se por um lado
isso foi saudável, pois a repressão sempre desencadeia formas doentias de
comportamento, por outro dificultou para muitos (embora não-propriamente para
Freud e para os psicanalistas) a compreensão clara de que o reconhecimento e o
controle dos desejos (e não a repressão deles) é indispensável pata o
adentramento no mundo adulto e a realização da vida moral.
E nesse
sentido que o próprio Freud termina a quarta lição do seu famoso Cinco lições
de psicanálise com a seguinte observação: "Se quiserem, podem definir o
tratamento psicanalítico como simples aperfeiçoamento educativo destinado a
vencer os resíduos infantis".
Essa educação
consiste na aceitação do desejo, na sua recusa consciente, ou no adiamento,
além das formas da sublimação.
7. A filosofia da existência
No século XIX,
o filósofo dinamarquês Kierkegaard foi o primeiro a descrever a angústia como
experiência fundamental do ser livre ao se colocar em situação de escolha. Mais
tarde, no século seguinte, os existencialistas continuaram o caminho por ele
aberto, tentando compreender a singularidade da escolha livre.
Quando
analisamos o pensamento de Sartre (ver Capítulo 31 - O existencialismo),
podemos observar esse tipo de preocupação, claramente formulada na seguinte passagem:
"O conteúdo (da moral) é sempre concreto e por
conseguinte imprevisível; há sempre invenção. A única coisa que conta é saber
se a invenção que se faz, se faz em nome da liberdade".
A decorrência
desse pensamento é a dificuldade em estabelecer os critérios para a
fundamentação da moral. Sartre prometeu e não conseguiu cumprir a elaboração de
uma ética que não sucumbisse ao individualismo e relativismo, já que, segundo o
próprio Sartre, "cada homem é responsável por toda a Humanidade".
8. A questão moral contemporânea
Retomemos o
caminho percorrido até aqui. Vimos que, a partir da modernidade e culminando na
Ilustração, a moral se seculariza, permitindo a construção de um projeto moral
desligado da religião e cujo fundamento se encontra na razão autônoma.
Contudo, nos
séculos seguintes, várias críticas foram feitas à razão, ora por abafar as
emoções, os sentimentos, a instintividade, os valores "da vida",ora
por se tornar instrumento de opressão política, mascarando a ideologia. Poderíamos
acrescentar muitas outras queixas dirigidas à razão enquanto instrumento capaz de
desenvolver a ciência e a tecnologia, mas impotente para resolver os problemas
por elas desencadeados.
Ainda mais,
vimos que o Iluminismo valoriza a autonomia do sujeito moral. Mas a busca de
valores subjetivos e o reconhecimento do valor das paixões têm levado à
inversão da hierarquia tradicional razão-paixão, ao individualismo exacerbado,
à anarquia dos valores, o que culmina com a impossibilidade do equacionamento
dos critérios da vida moral.
Outra
característica da vida moral contemporânea é a existência de inúmeros particularismos
contrapostos ao antigo ideal de universalidade da moral. Mais do que nunca
predomina a atomização em diversas morais: dos jovens, das seitas religiosas,
dos movimentos ecológicos e pacifistas, dos homossexuais, das feministas e
assim por diante.
Com tal
observação, não negamos a importância dessas morais, já que elas representam o
posicionamento de grupos minoritários em busca do reconhecimento e aceitação
por parte dos que os discriminam e excluem. O que realçamos com a referida
atomização é que muitas vezes ocorre a perda do sentido de totalidade da ação
humana.
Só para dar um
exemplo: é importante o esforço dos movimentos feministas no sentido de buscar
o reconhecimento da maioridade da mulher. Mas essa luta, desvinculada das
questões políticas, pode levar - como muitas vezes levou - a certos
descaminhos. Afinal, a emancipação feminina não pode ser compreendida apenas a partir
da oposição homem-mulher, mas como um dos elos do sistema de poder mais amplo
em uma sociedade dividida, onde persistem formas de exploração de trabalho
humano.
Além disso, da
atomização resulta a percepção de que a ação moral não teria fundamentos, o que
nos condena ao relativismo das decisões imediatistas e aos casuísmos.
Tal situação
oferece alguns sérios riscos de regressão para soluções arcaicas, anteriores às
conquistas do iluminismo. A isso se refere o filósofo brasileiro Sérgio Paulo
Rouanet: "A tentação mais óbvia é recolocar a moral sobre fundamentos
religiosos. O cristianismo tradicional está sempre disponível, mas não faltam alternativas
pós-modernas, que vão desde os fundamentalismos, evangélicos ou carismáticos,
até o esoterismo. Quando a tradição religiosa não basta, há receitas ecléticas,
um pouco de Jung, algum Herman Hesse, Reich em pequenas doses, e muita
meditação no interior de pirâmides de cristal, entre um baralho de tarô e um
livro de Paulo Coelho.
2 Sérgio Paulo Rouanet, Dilemas da moral
iluminista, in Adauto Novaes (org.), Ética, p. 157.
O novo Iluminismo
Em síntese, a
situação da moral no mundo contemporâneo nos lança diante de um impasse:
·
- de um lado, o prevalecimento da ordem
subjetiva das vivências e emoções, a anarquia de princípios ou a simples
ausência deles...
·
- de outro lado, a razão dominadora, instrumento
de repressão, como nos denunciaram Marx, Nietzsche, Freud e muitos outros.
Filósofos tais
como os representantes da Escola de Frankfurt (Horkheimer, Adorno, Benjamin,
Marcuse) analisam a crise da razão contemporânea, o "eclipse da
razão", e, visando evitar os irracionalismos, desenvolvem o trabalho de
recuperação da razão não repressora, capaz de autocrítica e que esteja a
serviço da emancipação humana.
Esses
filósofos utilizam o conceito de Iluminismo em um sentido mais amplo do que
aquele que se refere ao período histórico da Ilustração, no século XVIII. Assim,
um pensador iluminista é aquele existente em qualquer tempo e cujas idéias
fazem uso das luzes da razão para combater as superstições, o arbítrio do poder
e para defender o pluralismo e a tolerância.
Em que a
tendência iluminista poderia nos ajudar no impasse da busca dos fundamentos da
moral? Vamos procurar algumas pistas no pensamento do filósofo Jurgen Habermas.
Habermas e a ética discursiva
Jürgen Habermas ( 1929) inicialmente sofreu influência da
Escola de Frankfurt, mas dela se desligou para percorrer itinerário próprio.
Desenvolveu então a teoria da ação comunicativa, que fornece os elementos para
a compreensão da ética discursiva (ver Quarta Parte do Capítulo 10). A ética
discursiva é uma teoria da moral que recorre à razão para sua
fundamentação. Embora sofra a influência
de Kant, não se fundamenta no conceito de razão reflexiva, mas de razão
comunicativa. Ou seja, enquanto na razão kantiana o juízo categórico está
fundado no sujeito e supõe a razão monológica (do monólogo), o sujeito em
Habermas é descentrado, porque a razão comunicativa supõe o diálogo, a
interação entre os indivíduos do grupo, mediada pela linguagem, pelo discurso.
A razão
comunicativa é mais rica por ser processual, construída a partir da relação
entre os sujeitos, enquanto seres capazes de se posicionarem criticamente
diante das normas. Nesse caso, a validade das normas não deriva de uma razão
abstrata e universal, nem depende da subjetividade narcísica de cada um, mas do
consenso encontrado a partir do grupo, do conjunto dos indivíduos.
Portanto, a
subjetividade se transforma em inter-subjetividade. Se retomássemos o exemplo
dado anteriormente (no item sobre Kant), a validade da norma "não roube"
deveria estar fundada na razão comunicativa e resultaria do discurso
interpessoal.
Evidentemente,
a interação entre os sujeitos precisa se fazer sem os recursos de pressões
típicas do sistema econômico (que se baseia na força do dinheiro),
ou do sistema político (que se funda no exercício do poder).
A ação comunicativa supôe o entendimento entre os indivíduos que procuram, pelo
uso de argumentos racionais, convencer o outro (ou se deixar convencer) a
respeito da validade da norma: instaura-se aí o mundo da sociabilidade, da
espontaneidade, da solidariedade, da cooperação.
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